Se há um setor que sofreu com medidas errôneas e intervenções malsucedidas do governo federal nos últimos anos é o elétrico. A estabilidade e o expressivo crescimento foram quebrados em 2012, com a MP 579, posteriormente convertida na Lei 12.783, e uma série de legislações que se seguiram, combinadas com uma escassez de chuvas de efeitos devastadores. Hoje, não faltam problemas a serem resolvidos nas mais variadas esferas. Pouco tempo após assumir o comando do país, o presidente em exercício Michel Temer mostrou que pretende mudar radicalmente a postura do governo, reduzindo o intervencionismo e adotando uma postura mais liberal na economia, inclusive na área de energia, com a expressiva reformulação dos responsáveis pela política energética do Brasil.
A mudança na administração do país (e por consequência, no setor de energia), é inicialmente temporária, uma vez que a gestão de Temer ainda depende da votação pelo Plenário do Senado pelo afastamento definitivo de Dilma Rousseff do cargo. O prazo de 180 dias, contados a partir do afastamento, termina em 8 de novembro.
Recém-chegado ao setor elétrico, o novo ministro de Minas e Energia, Fernando Bezerra Coelho Filho, terá, portanto, de aprender muito em pouco tempo se quiser obter algum sucesso na pasta.
Para entender melhor o tamanho e a variedade dos problemas que terão que ser enfrentados, assim como as possíveis soluções, a Brasil Energia conversou com 15 dos maiores especialistas do setor elétrico e fez a todos a mesma pergunta: qual o maior problema do setor elétrico, e que ações o novo governo deve tomar para enfrentá-lo?
A sobrecontratação das distribuidoras foi o mais citado. Não por acaso, deve ser o nó prioritário a ser desatado pelo ministro.
As respostas nas próximas páginas mostram a complexidade e variedade dos problemas, e também apresentam boas sugestões para resolvê-los.
SOBRECONTRATAÇÃO DAS DISTRIBUIDORAS
“O maior problema do setor hoje é a sobrecontratação das distribuidoras de energia”, diz de bate pronto o novo diretor geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico, Luiz Eduardo Barata.
As distribuidoras que seguiram as regras e contrataram energia suficiente para atender à demanda prevista, ficaram com uma quantidade enorme de energia sobrando, por uma série de razões, entre elas a recessão econômica. Hoje é possível passar apenas uma pequena parte dessa energia adiante. O que sobra deve ser liquidado seguindo o Preço de Liquidação de Diferenças (PLD), que está muito baixo. As empresas se veem então na situação de vender por R$ 50/MWh uma energia pela qual pagam R$ 180/MWh, por exemplo. Não se sabe exatamente qual o valor – o governo contratou uma consultoria para calcular o passivo em detalhes –, mas estimativas do mercado apontam para um prejuízo na casa dos R$ 100 bilhões, entre 2016 e 2024, com ápice entre 2019 e 2020.
“É um dos maiores problemas pelo motivo óbvio de desequilíbrio econômico-financeiro [das empresas], que veio na sequência já de um período de impactos [para as empresas] com exposição involuntária e GSF”, afirma Joisa Dutra, diretora do Centro de Regulação e Infraestrutura da FGV. “É uma conta que nem distribuidoras, nem geradores, nem consumidores têm condições de arcar sozinhos”, diz Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil.
Não há ainda uma solução à vista, mas o diretor-geral da Aneel, Romeu Rufino, afirma que a agência está debruçada para tratar do tema, considerado prioritário. O consenso é que todos os lados deverão se sentar à mesa para chegar a um grande acordo e repartir mais uma vez o prejuízo.
“O primeiro ponto da pauta da mudança no setor elétrico é inserir o lado da demanda, a participação do consumo”, afirma Elbia Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica). “Nós temos dois ambientes de contratação, o ACR e o ACL, mas quem está no livre não pode vender sobra e no regulado as distribuidoras não podem arbitrar seus contratos. Por isso a gente está com essa sobra. O que falta no modelo do setor elétrico é sinal de preço e gerenciamento da demanda.”
GSF
A sigla que tirou o sono dos geradores hidrelétricos ainda é um grande entrave para o equilíbrio do setor, segundo Luiz Fernando Vianna, presidente da Copel. “Na geração, o problema ainda é o GSF”, afirma. O déficit de geração hídrica (generation scaling factor, no termo em inglês) ocasionado pela escassez de chuvas foi potencializado pelos altos preços da energia no mercado de curto prazo – que os geradores precisavam comprar para compensar o que não foi gerado e atender aos contratos. Com isso, a conta passou dos R$ 20 bilhões em 2015, quando foi editada a MP 688 para repactuar o risco hidrológico, prorrogando as concessões hidrelétricas para compensar o prejuízo. Apesar de a maioria das empresas terem aderido, a solução só atendeu ao mercado regulado e as usinas e contratos no ACL continuam com o problema.
EQUILÍBRIO FINANCEIRO
“O primeiro problema a ser resolvido é o equilíbrio econômico-financeiro das empresas do setor elétrico”, diz a advogada e economista Elena Landau, que foi diretora do BNDES no governo FHC e comandou o programa de privatizações na década de 1990. O estado crítico das empresas, especialmente as do grupo Eletrobras não terá saída fácil, segundo ela. “Não há uma solução simples. Precisa resolver o problema da Eletrobras com a venda de ativos e sentar o setor pra conversar e decidir em comum acordo como resolver essa situação. É muito mais complexo do que em 2001, pois temos hoje muito mais agentes e não há Tesouro e nem tarifas para para recorrer. Será preciso um novo acordo setorial.”
O presidente da Chesf, José Carlos de Miranda Farias, concorda. “É, sem dúvida, o equilíbrio econômico-financeiro das empresas, especialmente do grupo Eletrobras, que terá em indenizações significativas com RBSE (transmissões antigas). Só a Chesf irá receber R$ 5,6 bilhões”, diz Miranda.
“Agora, temos que resolver os problemas de curto prazo, criar linhas de financiamento, [fazer] os bancos voltarem a financiar. Todas as empresas estão passando por dificuldades, temos a sobrecontratação. Então, a prioridade número um é voltar a ter equilíbrio econômico-financeiro.”
JUDICIALIZAÇÃO
O termo que se tornou praticamente onipresente no setor elétrico em tempos recentes assombra ainda muitas empresas e é resultado de medidas falhas e excessivo intervencionismo do governo no mercado, segundo agentes. Entre as alterações legais e regulatórias criticadas pelos agentes estão medidas como a Resolução CNPE 3 – que determinou o rateio do ESS entre todos os agentes –, a portaria 455 – que trata de registros de contratos no mercado livre – e, como não poderia deixar de ser, a malfadada MP 579, convertida na Lei 12.783. “Se não tivermos coragem para lidar com a maligna MP 579, que tirou a força das empresas, não vai resolver”, garante João Carlos de Oliveira Mello, sócio-presidente da Thymos Consultoria. “É preciso ajustar para frente, criar outro ambiente, e para trás, começar a compensar adequadamente geradores, para reiniciar a capacidade de investimento dessas empresas, especialmente da Eletrobras, que foi a principal atingida. “Seria muito importante rever os critérios de receita após a MP 579.”
A judicialização ocorre também no atraso da entrada em operação de usinas e linhas de transmissão, no licenciamento ambiental, na inadimplência no mercado de curto prazo, etc.
“Uma primeira e importante medida é limpar o ambiente regulatório revogando portarias que interferem na atuação de órgãos como Aneel e ONS, centralizando atividades que não garantem decisões de qualidade e criam ruídos para o setor”, afirma Edvaldo Santana, consultor e professor da UFSC.
ENCARGOS
Rever os pesados encargos setoriais deve ser prioridade, segundo Camila Schoti, gerente de energia na Associação Brasileira de Grandes Consumidores de Energia (Abrace). “A CDE é uma das nossas maiores preocupações, um dos maiores custos do setor. A gente está falando de despesas para o consumidor da ordem de R$ 20 bilhões nesse ano.”
Segundo ela, a gestão da Conta de Consumo de Combustíveis (CCC), para atender os sistemas isolados, também poderia ser melhorada. “Temos um fundo que é gerido por um agente que se beneficia e usa o recurso desde fundo [Eletrobras]. Embora a Aneel faça a fiscalização, ela reconhece que as informações que tem recebido acerca da gestão do fundo não são suficientes. São pequenas coisas que observamos que podem ser ganhos rápidos”, afirma Camila. “Havia a perspectiva de que a ligação de Manaus ao sistema integrado iria reduzir a CCC, mas na verdade ela vem crescendo. Há um espaço muito grande para discutir a gestão dos sistemas isolados, como fazer isso de uma forma mais eficiente.”
MODICIDADE TARIFÁRIA
Penalizados por aumentos recentes de mais de 50% nas tarifas de energia elétrica, os consumidores precisam de um alívio nos próximos anos, afirma Rafael Kelman, diretor da PSR. “As tarifas estão muitos altas. É preciso adiar ações para reduzir o custo da energia. Uma medida necessária é reduzir o despacho termelétrico, o que já deveria ter sido feito segundo os próprios modelos do ONS. Cada R$ 1 bilhão gasto com as térmicas tem um impacto de 1% nas tarifas. Há térmicas sendo despachadas sem necessidade, algumas inclusive com custos altíssimos, na faixa dos R$ 600/MWh.”
GOVERNANÇA
“O problema número 1 é acertar a governança”, diz Fernando Luiz Zancan, que comanda a Associação Brasileira do Carvão Mineral (ABCM). “Temos que acertar a governança, temos um novo modelo, um novo ministério, um rearranjo geral, e a governança afinada, falando a mesma língua, e ampliar o diálogo. A solução é ouvir, escutar os agentes, renegociar e estudar a governança. E principalmente abrir diálogo com os ministérios afins, especialmente o Ministério do Meio Ambiente, para destravar todos os problemas que nós temos.”
CONTRATAÇÃO DE ENERGIA NOVA
Apesar de bem-sucedidos durante um bom período, os leilões de energia do mercado regulado vêm sofrendo críticas por não atender de maneira ideal nem as distribuidoras nem as diferentes fontes geradoras. Para evitar que novos problemas de descasamento de demanda e oferta ocorram no futuro, Edvaldo Santana, consultor, professor da UFSC e associado da ABRAPCH, recomenda a realização de leilões descentralizados de energia, “deixando nas mãos das distribuidoras, que iriam atender suas necessidades, como forma de evitar sobrecontratações e subcontratações, sem a necessidade de se ter a rigidez de leilões A-1, A-3 e A-5, mas mantendo a realização obrigatória dos leilões”, diz o ex-diretor da Aneel.
“O problema é que a matriz não esta sendo desenvolvida de forma adequada para fomentar os pontos fortes do Brasil”, afirma Newton Duarte, presidente da Associação da Indústria de Cogeração de Energia (Cogen). “Atualmente se compra energia a bel prazer, em qualquer lugar, meramente considerando o preço inicial da fonte, não pelo custo total para o setor elétrico. A solução é o fomento da geração distribuída, pautado por leilões ou compra direta de chamada públicas pelas distribuidoras, por fontes e regionais. Temos que acabar com esse negócio de comprar qualquer coisa.
“Hoje, a gente discute só preço. Se há uma usina em São Paulo com preço de R$ 100/MWh, ela é preterida em relação a uma no Rio Grande do Norte, que custa R$ 98/MWh. O planejador compra assim. E depois coloca uma linha que vai custar o equivalente a R$ 40/MWh, para trazer a energia. Por isso a modicidade no leilão não foi inteligente. Estão comparando coisas que não são comparáveis, as ditas externalidades.”
TRANSMISSÃO
“Quando se pensa em expansão, temos o problema da transmissão de energia”, afirma Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil. “O desafio é gigantesco. No ano passado, tivemos 15 lotes vazios; 2014, 12 lotes vazios; 2013; 10 lotes vazios. Este ano, primeiro leilão, 10 lotes vazios. Ou seja, são projetos de transmissão ou subestações tidos como indispensáveis vis-à-vis a carga a ser atendida e a geração que está entrando e estão empurrando com a barriga. Transmissão é um megaproblema que ainda precisa ser equacionado.”
POLÍTICA ENERGÉTICA
Bastante criticadas nos últimos anos, a política energética e a postura do governo devem ser as primeiras a mudar, afirma Erik Eduardo Rêgo, sócio da Excelência Energética. “A mudança começa com o entendimento de que a tentativa de restabelecimento do modelo de investimentos concentrados nas estatais fracassou”, diz Rêgo. “A grande influência desses investimentos gerou dependência econômica da mão estatal, sufocou o setor privado e provocou excessos: tantos projetos de geração e transmissão são difíceis de serem administrados simultaneamente, e assim geraram atrasos e aumento de custos”, conclui. “Assim, a grande mudança que este novo governo deve promover é a redução do papel do Estado na economia e no setor elétrico”, recomenda Rêgo. “Como cabe ao Estado dar os sinais corretos à economia, a melhor demonstração de mudança de rumo seria a privatização da Eletrobras, das suas distribuidoras, passando pelas transmissoras, até seus ativos de geração. Chega do jogo de empurra-empurra, da socialização dos custos da ineficiência, entre consumidor e contribuinte. Este corajoso ato sinalizaria ao mercado que o setor caminharia para o realismo.”
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