A gestão da água não se inicia nem se encerra na penalização dos consumidores pelo aumento do consumo em situações de iminente escassez, como a que vem se delineando no Estado de São Paulo. Sem adentrar na discussão sobre a legalidade da cobrança de valores adicionais daqueles que consumirem acima da média, do ponto de vista de gerenciamento de recursos hídricos, o acréscimo de valores na conta de água dos consumidores pode possuir efeito paliativo frente ao possível racionamento. Contudo, a medida não afasta uma premissa fundamental: se o gerenciamento dos recursos hídricos não for tratado de forma prioritária e planejada em âmbito nacional, poderá faltar água não só para o abastecimento da população, mas também para as atividades econômicas essenciais ao desenvolvimento.
Especialmente desde as décadas de 1990 e 2000, o gerenciamento dos recursos hídricos não tem figurado entre as políticas públicas prioritárias, o que decorre, em alguma medida, do fato de convivermos com uma falsa impressão de abundância hídrica que, na realidade, não se reflete necessariamente em disponibilidade de água para consumo. Em níveis globais, cerca de apenas 1% da água doce do planeta está acessível em lagos, rios e outros mananciais da superfície terrestre. No Brasil, a disponibilidade hídrica per capita é relativamente confortável frente a muitos países, embora exista uma distribuição espacial desigual se levarmos em conta a vocação de certas regiões e considerarmos fatores como o contingente populacional e as demandas pelo uso da água.
Segundo dados da Agência Nacional de Águas (ANA), a Região Hidrográfica Atlântico Sudeste, que abrange os estados de Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná, com expressiva população e alta relevância econômica, por exemplo, possui disponibilidade hídrica correspondente a 1,2% do valor nacional, um dos menores índices frente à variedade e à quantidade de atividades que necessitam de água na região. Já a contribuição média da bacia hidrográfica do Rio Amazonas representa 73% do total do país, embora se trate de região com número reduzido de demandas e de habitantes.
A disponibilidade hídrica per capita é confortável, embora exista uma distribuição espacial desigual
Ainda que sejamos uma nação repleta de rios e lagos, é primordial ter em mente que a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico e sujeito à escassez. Por isso, é preciso haver planejamento e gestão preventiva que considere as diversidades físicas, bióticas, demográficas, econômicas, sociais e culturais das diversas regiões. O planejamento deve, também, considerar estimativas científicas referentes a eventos hidrológicos críticos, como secas e cheias, além dos usos atuais e futuros da água, conforme preceitua, desde 1997, a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei Federal nº 9.433). Do contrário, os reflexos negativos serão sentidos tanto nas casas dos cidadãos, ao abrir das torneiras para realização das atividades básicas diárias, quanto em atividades econômicas.
Exemplo disso são as inúmeras notícias acerca do risco de “apagões” e de racionamento de energia em função de uma alegada estiagem atípica e da operação dos reservatórios abaixo das capacidades máximas. Situação semelhante foi vivenciada pelo país em 2001, quando houve um real racionamento de energia em função dos baixos índices hídricos. Todavia, passados treze anos, fatores muitíssimos semelhantes aos da década passada voltam a assombrar governantes e população. A solução do problema específico da geração energética, que certamente vai além do racionamento e do acréscimo na conta de luz ou de água, passa por aumento da água reservada, proteção das nascentes e mananciais.
É preciso ainda haver diversificação da matriz energética, fomentando projetos de geração de energias alternativas como a eólica, a solar e o biogás. Afora isso, é fundamental otimizar os processos de licenciamento ambiental destes empreendimentos e também de usinas hidrelétricas e seus reservatórios, reforçando a capacitação técnica e material dos órgãos públicos responsáveis pela análise e aprovação dos projetos energéticos.
Para efetivação das ações de planejamento e gestão, o país possui um marco legal bastante avançado. A Constituição Federal comina o direito de todos, inclusive das futuras gerações ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ao proteger a natureza, a Constituição também tutela a água, já que esta constitui um dos recursos que a compõe.
Sem retirar o seu caráter econômico, a legislação indicou as águas como bens da União ou dos Estados estabelecendo um sistema comum de gestão entre União, Estados, Distrito Federal e municípios. Esses entes públicos não são proprietários dos recursos hídricos, mas responsáveis pela guarda, administração e edição de normas para o gerenciamento dos recursos hídricos. Em 1997, com a edição da lei que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, foi estabelecido um sistema nacional e definidas as diretrizes de gestão e os instrumentos para se alcançar objetivos como a garantia de disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos usos atuais e futuros.
Se a água é peça fundamental para a engrenagem que movimenta questões estratégicas e para a garantia da vida digna das pessoas, e considerando o arcabouço jurídico capaz de subsidiar os agentes públicos na tomada de decisão e na definição de políticas voltadas à gestão hídrica, espera-se que os problemas na região mais importante do país sirvam como alerta e levem o poder público de todos os níveis a dispensar a necessária atenção ao assunto de modo preventivo, e não apenas em momento de crise.
Fabiana Figueiró é advogada especialista em Direito Ambiental, sócia de Souto Correa Advogados
Fonte: Portal PCH – 19/05/2014
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