Contando com a chuva, que não veio, e com a obediência das concessionárias, que não houve, o governo acabou transformando uma oportunidade de baixar as tarifas em prejuízo bilionário para os consumidores – que, cedo ou tarde, pagarão a conta.

Para o setor elétrico, janeiro costuma ser um mês de recuperação dos reservatórios hidrelétricos. Sobretudo nas regiões Sudeste e Centro-Oeste, que respondem por cerca de 70% da capacidade de armazenamento do Sistema Interligado Nacional (SIN). Em 2014, porém, a regra não se repetiu.

O verão chegou forte e fez o consumo de energia disparar, mas sem que aumentasse a geração da maior parte das fontes que compõem a matriz energética brasileira. A solução foi recorrer a um forte acionamento das próprias hidrelétricas, que não eram tão exigidas assim desde março de 2012. A alta produção, de 49.533 MW médios – 8% acima da registrada em dezembro e 14% superior à de janeiro de 2013 – coincidiu com a terceira pior série hidrológica para o Sudeste/Centro-Oeste em 84 anos, castigando ainda mais essas usinas.

Com turbinas a mil e sem chuvas, a salvação da pátria pelas hidrelétricas custou um deplecionamento de 5,67% dos reservatórios das usinas que compõem a maior parte da reserva do país. Foi a primeira vez desde 2000 em que se registrou redução no nível dos lagos da região entre dezembro e janeiro, época em que, em anos anteriores, havia ganhos de 1% a até 19% na acumulação de água. Mas até mesmo entre o final de 2000 e o começo de 2001, ano do racionamento de energia, a situação foi melhor, com recuperação de 2% nos reservatórios.

Assim, a “caixa d’água” do sistema elétrico brasileiro chegava a fevereiro com 34,61% de armazenamento. Marca que supera apenas a daquele fatídico ano de 2001, quando os reservatórios estavam em 33,45% em igual mês.

A ironia é que, enquanto as hidrelétricas secavam, as termelétricas a gás natural – mais preparadas para gerar energia na base do sistema – entregavam pouco mais de 5 mil MW médios, abaixo dos picos de 7 mil MWm registrados entre o final de 2012 e o início de 2013. Já as usinas a óleo e bicombustíveis saltaram de 1.500 MWm em dezembro de 2013 para 2.200 MWm em janeiro de 2014, embora o montante também seja inferior ao pico de produção, de 3 mil MWm, em janeiro do ano passado.

A distorção do ICB

O comando para colocar todas as térmicas do país em operação veio apenas no começo de fevereiro, quando o Custo Marginal de Operação (CMO) do sistema passou de R$ 480 para R$ 1.065/MWh no Sudeste. Esse indicador, calculado pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), baliza o acionamento das termelétricas. Cada usina é chamada pelo ONS a entregar energia assim que o CMO ultrapassa o seu custo variável unitário (CVU). E para se ter ideia do custo do despacho com o CMO em tal nível, basta comparar as térmicas com outras fontes: parques eólicos e hidrelétricas têm negociado energia a valores próximos de R$100/MWh.

Para o consultor Roberto Pereira D’Araújo, diretor do Instituto Ilumina, faltam termelétricas com “preços razoáveis” para serem acionadas, o que sobrecarrega as hídricas. O problema seria causado pela metodologia adotada nos leilões de energia realizados desde 2004, quando as térmicas passaram a ser contratadas não com base em preços ou no custo de operação, mas pelo índice de custo benefício (ICB).

e o benefício energético de uma nova usina, por meio de simulações da operação do sistema. No entanto, para os críticos, a fórmula cria vantagens para usinas que são caras quando em operação (custo variável), mas tendem a ser menos acionadas e, portanto, apresentam um ICB menor quando se leva em conta sua operação ao longo de anos e anos.
O ICB traz uma distorção. Você acaba com muitas térmicas caras e uma porção delas não gera energia (durante a maior parte do tempo). Elas são contabilizadas na oferta, mas, no fim, quanto geram? Muito pouco. São as hidráulicas que

produzem por elas. Essa expansão que tivemos com térmicas só exigiu mais das hidrelétricas”, aponta D’Araújo. Por outro lado, quando precisam ser acionadas, essas térmicas geram um custo estratosférico.

O professor Luiz Pinguelli Rosa, do Instituto de Pós-Graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ), avalia que o conceito de ICB usa uma previsão “otimista” sobre a operação das usinas. Assim, se elas funcionam por mais tempo que o esperado, “os consumidores terão de pagar por uma energia muito cara”.

Modelo desgastado
As reflexões de Pinguelli Rosa, que constam de um balanço sobre os governos Lula – quando ele foi presidente da Eletrobras de janeiro de 2003 a maio de 2004 – e Dilma Rousseff na área de energia, concluem que a introdução das termelétricas no modelo brasileiro, que tinha absoluto predomínio hidrelétrico até 2001, “ficou malresolvida” e se desdobrou na falta de gás natural e na “inadequação dos contratos”. Para o especialista, seria necessário rever o modelo. “O Brasil, que tem uma matriz energética limpa, passa da hidreletricidade para termelétricas de baixa eficiência.”

Em 2012, quando o acionamento termelétrico ocorreu, principalmente após outubro, foram cobrados R$ 1,7 bilhão de Encargo de Serviço do Sistema por Segurança Energética (ESS-SE) para bancar essa energia extra. Já em 2013 os recolhimentos somaram R$ 4,3 bilhões até setembro, quando uma mudança nas regras do setor extinguiu encargos e internalizou o custo das térmicas no preço do mercado spot de energia.

ONS teria demorado para acionar térmicas

Para alguns especialistas, houve falha na operação do sistema, pois as térmicas deveriam ter sido acionadas antes do final de 2012

[29.03.2014] 10h19m / Por Paulo Sérgio Jr

Luiz Pinguelli Rosa, da Coppe/UFRJ, e Roberto Pereira D’Araújo, do Instituto Ilumina, concordam em um ponto polêmico. Teria havido erro de operação do sistema no final de 2012, quando, assim como agora, todas as térmicas foram ligadas para assegurar o suprimento de energia.

“A operação das termelétricas poderia ter sido antecipada, para evitar que o nível dos reservatórios ficasse tão baixo”, opina Pinguelli. Para D’Araújo, a situação atual seria um reflexo dessa falha. “O sistema elétrico tem memória. Se tivéssemos despachado as térmicas antes, teríamos poupado milhões. Estamos agindo tardiamente.”

Em nota, o ONS informou que, desde 2009, o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) adota uma estratégia de operação baseada na definição mensal de um nível de segurança dos reservatórios de cada subsistema, tendo como objetivo preservar os armazenamentos até o final do período seco. A medida visava garantir o atendimento no ano seguinte. Essa estratégia levou ao despacho de geração térmica máxima de outubro de 2012 a setembro de 2013.

Neste mês houve uma mudança metológica, com a introdução do conceito de aversão ao risco no modelo de otimização de médio prazo. Com isso, o CMSE passou a adotar um critério mais robusto que o anterior, que era baseado nas Curvas de Aversão ao Risco. O novo critério visava à elevação do despacho de geração térmica por ordem de mérito e sua total incorporação ao processo de formação de preço. A caracterização do atual período chuvoso como uma das piores estiagens do histórico fez com que o despacho de geração térmica em sua totalidade fosse mantido até os dias atuais.

Governo apostou errado e perdeu oportunidades

Confiante na renovação das concessões, governo cancelou leilão A-1 de 2012 e acabou desequilibrando o balanço elétrico

Por Paulo Sérgio Jr

Leilões de energia existente (A-1) são promovidos pelo governo tradicionalmente no final de cada ano para que as distribuidoras possam garantir suprimento suficiente para atender seus mercados mesmo no caso de imprevistos, como aumento extraordinário da demanda ou problemas com usinas que deveriam ter entrado em operação. No final de 2012, diversas termelétricas não entregues pelos grupos Bertin e Multiner tiveram suas autorizações revogadas, saindo do planejamento. Além disso, contratos assinados por geradoras em leilões antigos estavam por vencer na virada do ano.

Apesar disso, o Ministério de Minas e Energia (MME) anunciou uma proposta para renovar antecipadamente as concessões de hidrelétricas que venceriam até 2017. Em troca, elas deveriam aceitar vender a energia por preços muito menores e regulados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Na expectativa de que todas as empresas aceitariam os termos colocados na Medida Provisória 579 (convertida na Lei 12.783/13), o governo cancelou o leilão A-1 de 2012. “A demanda das distribuidoras para 2013 será atendida com a energia proveniente das usinas cujas concessões serão prorrogadas”, explicava uma nota no site do ministério.

A previsão, porém, não se cumpriu, pois nem todas as geradoras aceitaram as condições. Com isso, as distribuidoras se viram subitamente sem energia e precisaram comprar suprimento no mercado spot, onde o custo da eletricidade é balizado pelo Preço de Liquidação das Diferenças (PLD).

Calculado com base em uma fórmula que leva em conta a hidrologia, o nível dos reservatórios e outros fatores, o PLD disparou no início de 2013, chegando a R$ 554/MWh na segunda semana de janeiro daquele ano. O valor era muito superior aos R$ 110/MWh praticados no mercado livre durante a maior parte de 2012, quando o governo poderia ter garantido a contratação das distribuidoras por um leilão. Pior: como o A-1 fora cancelado pelo próprio MME, a exposição das distribuidoras ao PLD foi considerada involuntária, o que permite que o custo com a compra da energia à vista seja repassado para o consumidor.

Na tentativa de evitar esse repasse, foi realizado em março do ano passado um leilão de ajuste para fechar o “buraco”, mas o preço-teto, de R$ 163/MWh, não atraiu vendedores. O PLD estava então na casa dos R$ 300/MWh, o que tirou qualquer interesse na licitação. Em junho houve nova tentativa: um leilão especial, para entrega no mesmo ano. Novamente não atraiu geradores por causa do preço-teto, de R$ 171/MWh.

se em contratos para suprimento no ano por cerca de R$ 190/MWh, enquanto se podia fechar a contratação para 2014 por R$ 140/MWh.

O governo, porém, marcou outro leilão somente para dezembro. E aí o PLD já havia voltado à casa dos R$ 300/MWh. Para evitar novo fiasco, foram ofertados contratos de prazo mais longo – 12, 18 e 36 meses – e preços maiores. O sucesso foi parcial. Como mais contratos de fornecimento assinados pelas distribuidoras estavam para vencer, o certame só conseguiu reduzir a exposição destas ao PLD em 2014 de cerca de 6 GW médios para 3,3 GW médios.

Se a continuidade da descontratação preocupava, a tensão logo aumentou ainda mais. O PLD começou 2014 em R$ 250 por MWh, fechou janeiro em R$ 480 e desde o início de fevereiro está cravado no valor máximo permitido pela regulação do setor: R$ 822,83/MWh. Essa é a conta que irá para o consumidor – seja hoje, seja depois.

Reservatórios estão menores e “furados”

A capacidade de acumulação dos reservatórios hidrelétricos brasileiros está em franco declínio

Por Paulo Sérgio Jr

A gestão dos reservatórios, questão central em um sistema predominantemente hidrelétrico como o brasileiro, tem ganho ainda mais importância nos últimos anos. Isso porque, com o fim da ditadura militar e o retorno do país à democracia, as exigências ambientais e sociais para a construção de hidrelétricas cresceram a ponto de praticamente inviabilizar a construção de usinas com capacidade de armazenamento. Tanto que o Plano Decenal de Energia (PDE), documento oficial do planejamento do setor elétrico elaborado pela EPE, prevê que, mesmo que a capacidade hídrica instalada cresça 40%, a reserva terá uma elevação de apenas 2%.

E essa capacidade de acumulação já está em franco declínio. Dados do ONS revelam que os lagos das usinas tinham poderio suficiente para suprir 6,2 meses de carga em 2001 – número que caiu para 5,7 em 2005 e 4,7 em 2013. O movimento não surpreende: apresentação feita pelo diretor-geral do ONS, Hermes Chipp, em evento promovido pela UFRJ em 2008 já apontava certeiramente para a derrocada da capacidade de armazenamento dos reservatórios em relação à carga.

Para piorar, a consultoria PSR, do engenheiro Mário Veiga, vem afirmando em seus relatórios que o principal motivo para o atual estresse no setor elétrico é que há um desequilíbrio estrutural no sistema, uma vez que nos últimos anos, sobretudo em 2010 e 2012, os reservatórios se esvaziaram muito mais rapidamente do que indicavam as simulações da operação. Isso, mesmo com condições iniciais favoráveis e boa hidrologia.

“Em outras palavras, embora a capacidade firme nominal do sistema de geração seja maior que o consumo, o desempenho real dos geradores tem sido pior (menos eficiente) do que o previsto”, explica o PSR Report de fevereiro, que lista as principais causas da diferença: uma produtividade 4% menor nas hidrelétricas – que estariam gastando mais água para produzir cada megawatt-hora; previsões de vazões pouco realistas para o Nordeste, uma vez que os resultados reais têm ficado acima das simulações nos últimos 20 anos; e atrasos “sistemáticos” e “significativos” no cronograma de novas usinas.

Os cronogramas, inclusive, são um sintoma de como se tornou difícil tirar hidrelétricas do papel no Brasil. O primeiro PDE elaborado pela EPE, que traçava o planejamento para o setor elétrico entre 2006 e 2015, previa que essas usinas manteriam uma participação de 73% na matriz nesse período. Hoje, com 2015 logo ali, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) admite que essas usinas representam 63% da capacidade – dez pontos percentuais a menos que o esperado.

Fonte: Portal PCH – 16/04/2014

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