ONS deve estimular a redução da demanda dos grandes consumidores, que economizará milhões e prática usual no mundo.
Há na história econômica alguns eventos interessantes de “lock-in” – quando você ou uma atividade fica subordinada a uma tecnologia ou estrutura que não necessariamente é a melhor. O caso mais estudado é o do teclado das antigas máquinas de datilografar, cujo layout é, desde sempre, também utilizado nos computadores.
O formato QWERTY existe comercialmente desde 1874, quando a Remington começou a produzir sua primeira máquina de escrever. São várias as explicações para o layout que parece tão pouco amigável. Para digitar a palavra “mar” é necessário percorrer três linhas do teclado, e as letras não estão próximas umas das outras.
Uma explicação é bem convincente, apesar de questionada por 150 anos. Como as primeiras máquinas eram mecânicas, se o(a) datilógrafo(a) fosse muito rápido(a), e teclasse o “m”, o “a” e o “r” ao mesmo tempo, as hastes entre essas letras e a fita com
tinta ficariam presas. O espaço, na fita, só cabia uma letra. Perdia-se muito tempo para “desgrudar” as hastes. Assim, o layout utilizado, prudentemente, desacelerava o(a) datilógrafo(a).
O layout QWERTY, por oportunidade ou acaso, prevaleceu. Criou uma dependência, ou o que os evolucionistas chamam de path-dependent (dependente da trajetória). O estranho layout é, por isso, um caso de feedbacks positivos, também conhecido como “economia do QWERTY”. É uma tecnologia dominante. Mesmo que se conhecesse um formato mais amigável, com o passar do tempo sairia caro a troca e
adaptação à nova tecnologia.
No Brasil, não faz muito, a população foi obrigada a trocar as tomadas de suas instalações elétricas por outras no formato de três pinos. No entanto, a arrogância tecnológica (e não o acaso ou a oportunidade) forçou a dependência. Exigiu um layout único no mundo. Foi muito custosa e constrangedora a adaptação. É uma tecnologia que, mesmo não sendo dominante, prevaleceu compulsoriamente. Qualquer usuário de eletricidade que venha ao Brasil precisa trazer seu adaptador. O mesmo acontece com o brasileiro que vai para qualquer país do mundo e necessita carregar seu celular. É a isso que denomino de “economia da tomada de três pinos”.
O setor elétrico brasileiro (SEB) possui várias “tomadas de três pinos”. Entre 2006 e 2007, ainda no meu primeiro mandato como diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), tinha uma missão: para minimizar os efeitos das crises periódicas de
escassez de recursos hídricos, queria estimular a premiação do usuário de eletricidade caso ele reduzisse o consumo.
Na época, para o governo, era uma agressão falar em reduzir o consumo de energia. Seria visto como um racionamento. Para quem não lembra, uma das principais “armas” da campanha de eleição do primeiro governo Lula foi o racionamento de 2001-2002. Era também uma “herança maldita” – uma artimanha.
Em 2007, com a perspectiva de nova escassez de água, a Aneel descobriu que a Petrobras teria vendido duas vezes a mesma molécula de gás natural. Como as termelétricas quase não eram acionadas, a petroleira, oportunisticamente, vendeu o gás para a indústria. Foi uma batalha das mais penosas para o regulador comprovar a irregularidade. Mas foi também o período de sua maior grandeza. Mostrou o valor da independência. Ficou evidente a relação direta entre independência do regulador e a performance do SEB.
Como, naquele cenário, a perspectiva era de que a demanda superaria a oferta, fui ao governo, mais precisamente à Casa Civil, explicar que uma opção para equacionar o potencial problema seria premiar o consumidor que, voluntariamente, reduzisse uso da eletricidade. Para surpresa, a ideia foi bem recebida.
Mas, no passo seguinte, era necessário convencer as distribuidoras, os grandes consumidores, o Ministério de Minas e Energia e meus colegas da Aneel. Mas vou contar logo o resultado, para não cansar o leitor: depois de anos de discussão, foram aprovadas e implantadas as bandeiras tarifárias, que pune o consumidor, mesmo que ele reduza o uso da eletricidade. Felizmente, eu já não era um regulador.
A bandeira tarifária é uma das “tomadas de três pinos” do SEB – quando a dependência de um caminho resulta em feedbacks negativos. Para evitar ou minimizar os efeitos de uma crise de oferta, a única opção, desde 2014, é aumentar a receita das distribuidoras, para que paguem os expressivos custos da geração das termelétricas. Como, por causa disso, a conta de luz aumenta muito, o truque
seguinte consiste em articular um empréstimo em nome do consumidor.
Como essa estratégia também eleva a tarifa, aciona-se outro truque, que é antecipar a liquidação do empréstimo, mas com dinheiro do próprio consumidor. Essa etapa, nos nossos dias, ganhou o pomposo nome de “securitização”, que nada mais é que outra “tomada de três pinos”. Percebeu como surge a figura da “dependência criada pela mediocridade”?
Mas há boas notícias. No começo deste mês o Operador Nacional do Sistema resolveu que é a hora de atuar com mais razoabilidade econômica e, ao mesmo tempo, no bom caminho da redução das emissões de CO2.
Na perspectiva de aumento da dificuldade para manter a segurança e a confiabilidade da oferta de eletricidade, neste e nos próximos anos, nada melhor que estimular a redução da demanda dos grandes consumidores. É uma prática usual, mundialmente conhecida como “resposta da demanda”. E aprovada no Brasil desde 2017.
Em lugar de acionar uma térmica de R$ 500/MWh, faz todo sentido pagar R$400/MWh para que alguns usuários da rede reduzam a demanda. Cada 2.000 MW daria, para o pequeno consumidor, uma economia mensal de quase R$ 150 milhões – apenas com o custo direto de evitar o uso de termelétricas. Seria uma típica “economia do QWERTY”, com feedbacks positivos, e não a “economia da tomada de
três pinos”, com seus feedbacks negativos. Tomara que a prática prevaleça.
Por Valor Econômico.
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/setor-eletrico-e-suas-tomadas-de-3-pinos.ghtml
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