Com suas rédeas pressionadas por lobbies e interesses políticos, o setor elétrico há um bom tempo escapou da trilha da razoabilidade econômica.

No fim dos anos 1990, Robert Shiller buscava compreender o boom do mercado de capitais. O volume de ações negociadas crescia mesmo com o absurdo aumento do valor dos papéis. Apoiado em estudos publicados e em evidências históricas, constatou que o principal determinante do boom era a exuberância irracional, ou as expectativas irrealistas, às vezes forjadas, que ignoravam fundamentos técnicos e econômicos. Mas Shiller não conhece o setor elétrico brasileiro.

Semana passada encontrei um ex-colega de trabalho. Engenheiro formado em 1964, vive numa das cidades gaúchas mais afetadas pelas enchentes. Se revolta em saber que o Brasil tem hoje excesso de eletricidade, mas a tarifa é elevada. Espirituoso, no estilo analista de Bagé, concluiu que “o pequeno consumidor de energia é como cavalos de carruagem de monarquias. Quase sempre carregam inúteis”.

Junho por pouco não acaba com boa notícia. No dia 27, o ministro de Minas e Energia surpreendeu quando disse ao “Estadão” que “chegamos ao limite. Não há mais espaço para absorver subsídios na conta de energia”.

Surpreendeu porque, dias antes, com a Medida Provisória (MP) 1232, o governo esticou a conta de subsídios para combustíveis fósseis na Amazônia. E, em paralelo, o regulador divulgou impactos de outra MP, a 1212: cerca de 85 GW de solar e eólica se candidataram a subsídios (desnecessários). Serão mais de R$ 100 bilhões em 20 anos.

Sem contar os mais de R$ 25 bilhões ao ano das bondades com o dinheiro dos outros que vêm lá do Congresso, como mostrou Bruno Rosa, no “Globo” de 6 de julho. Feitas as contas, passa de R$ 550 bilhões a transferência de renda do mais pobre para o mais rico. A superoferta, motivada por essa extravagância de subsídios, ultrapassará o consumo do total de todas as regiões, excluído o Sudeste.

E como já não há espaço para tanta oferta, só em junho foi cortada 2.979 vezes a produção de diferentes usinas. Quase 100 cortes por dia. Um recorde mundial, que pôs o curtailment no vocabulário do setor elétrico e do Judiciário. Um autêntico boom, e com efeitos indesejáveis, como tarifas crescentes. E nada disso garante a segurança do suprimento. Veja o porquê.

Julho trouxe outra notícia impactante. O Operador Nacional do Sistema (ONS) determinou o acionamento de termelétricas (UTEs) – por enquanto as mais baratas. Isso já era preocupação do ONS em 2023 e, acredite, uma explicação estaria na superoferta.

É que a redução da geração pela solar entre o meio e fim da tarde coincide com o usual aumento da demanda. Em três horas somem 30 GW de solar e surgem 10 GW de demanda, que, somados, são atendidos pelas hidrelétricas – e sem espaço para erro. É um fenômeno conhecido como rampa ou “curva do pato”. E quanto maior a participação da solar, maior o esforço para manter a segurança do suprimento.

Em julho, os reservatórios esvaziarão 5 pontos percentuais, e pouco mais entre agosto e novembro. O índice de armazenamento, hoje em 68%, chegaria em novembro com 35% ou até mais. Nesse horizonte, o volume de chuvas será da ordem do inédito 50% da média. Por tudo isso, a efetividade da oferta, em 2025, é função das chuvas que cairão entre dezembro e abril. Ou seja, a oferta, mesmo exuberante, não é tão certa assim.

Essa é uma das razões de os modelos matemáticos indicarem, para julho, o uso de UTEs. A outra é a aversão a riscos, para evitar que o limite de déficit de potência seja superado. É isso que o operador, corretamente, procura evitar.

Tem mais: impulsionada por subsídios, a rampa do fim de tarde pode passar, já em 2026, de 60 GW. Será, portanto, tarefa muito complexa, senão incerta, garantir o suprimento sem o acionamento de um montante de UTEs bem maior que o desejável – em termos de custos e emissão de CO2. Uma opção seria o uso do armazenamento em baterias, que é viável mesmo sem subsídios, mas já enfrenta a
resistência dos concorrentes.

Mas, ao contrário do que dizem por aí, não é culpa de uma ou outra fonte de geração. A “curva do pato”, que requer cuidados adicionais, é uma característica de matriz elétrica com elevada participação da solar. Como não é razoável impedir o avanço dessa fonte, dadas as vantagens ambientais e de custos, é imperativo a definição de estratégias que evitem o solavanco de preço e a precoce elevação dos riscos.

Veja que absurdo. É crescente o número de consumidores atendidos off grid, isto é, fora da rede elétrica. Não porque eles queiram. Em várias distribuidoras, por escassez de investimentos, não há como conectar demandas adicionais. Inexplicável: a oferta é excedente, mas a demanda é reprimida.

O noroeste da Bahia é um caso conhecido, mas longe de ser isolado. A produtividade da agroindústria exige modernos equipamentos de irrigação, que aumentam a demanda. O empreendedor, sem saída, constitui “microgrids” – quecombinam solar, diesel, grandes baterias e pequenas hidrelétricas.

Não é necessária a sabedoria de Robert Shiller para notar que estamos diante de uma exuberante irracionalidade. A oferta é abundante, mas a demanda é reprimida. A matriz elétrica é diversificada, mas a segurança segue perigosamente dependente de hidro e termelétricas – nesta ordem. Não há fundamento econômico para tamanha mediocridade.

Lotada de subsídios espúrios e de anomalias regulatórias, típicas inutilidades, a carruagem elétrica, com sinais de fadiga, oscila entre crises. Com suas rédeas pressionadas por lobbies e interesses políticos, há um bom tempo escapou da trilha da razoabilidade econômica.

É fundamental, assim, que seja encontrada uma forma de distanciar o setor elétrico da maldição do vencedor, outro nome da exuberância irracional. A festejada vitória, com a oferta imprudente e não efetiva, que individualiza benefícios e socializa
custos, não passa de uma sofrida derrota, marcada pelo crescimento da tarifa e a duvidosa segurança do suprimento.

Por Valor Econômico.
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/a-maldicao-eletrica.ghtml

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