Mesmo com avanço de projetos de geração eólica e solar, especialistas enxergam potencial para instalação de PCHs
Responsáveis há décadas pelo perfil sustentável da matriz energética brasileira, as hidrelétricas têm perdido espaço, nos últimos anos, para projetos de geração eólica e solar, que demandam menos investimentos, entram em operação em prazo muito mais curto e – por isso mesmo – oferecem as menores tarifas para o consumidor.
Isso não significa, porém, que as usinas que geram eletricidade pela força das águas estejam prestes a perder o posto de principal fonte de energia do país. Muito ao contrário, asseguram especialistas. “As hidrelétricas vão continuar exercendo esse papel por muito tempo, talvez para sempre. Até para permitir a expansão das eólicas e solares, que são geradoras intermitentes, porque só funcionam quando há vento ou sol”, afirma Charles Lenzi, presidente da Associação Brasileira de Geração de Energia Limpa (Abragel).
As eólicas e solares também podem socorrer as hidrelétricas em caso de seca severa, como ocorreu em 2021, embora nesses casos ainda com um alcance limitado, o que obriga o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) a acionar também as termelétricas, de operação muito mais cara, além de poluidoras, para dar conta de abastecer o país inteiro. “O nível dos reservatórios têm ficado abaixo da média nos anos recentes, provavelmente por causa das mudanças climáticas, o que indica a necessidade de construirmos novas usinas. Hoje, os reservatórios estão cheios, mas não sabemos até quando permanecerão assim”, afirma Lenzi, cuja entidade defende a implantação das chamadas pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), com capacidade de gerar entre 5 MW e 30 MW, e as CGHs, centrais ainda menores que geram até 5 MW.
Segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), as hidrelétricas responderam por 73% da geração média de energia em 2022, graças à boa situação dos reservatórios, enquanto os parques eólicos contribuíram com 13% do fornecimento, as termelétricas com 12% (englobando os diversos combustíveis usados, como gás natural, biomassa, diesel e fissão nuclear) e as usinas solares com 2%. Já no quadro referente à capacidade instalada das diversas fontes geradoras, o predomínio das hidrelétricas – que já foi de cerca de 85% duas décadas atrás – caiu para 56% em dezembro do ano passado.
Com as fortes chuvas deste verão e início de outono, a Aneel prevê que os reservatórios do Sudeste e Centro-Oeste deverão atingir no fim de abril um volume útil acima de 85%, o maior dos últimos 12 anos, indicando outra temporada de bom aproveitamento das hidrelétricas.
Essa perspectiva positiva estimulou o diretor-geral da agência reguladora, Sandoval Feitosa, a enviar um ofício ao Banco Central relatando a alta probabilidade de manutenção da bandeira verde – que garante as menores tarifas aos consumidores em geral – até o fim do ano, contrariando o prognóstico de bandeira amarela feito pelo Comitê de Política Monetária (Copom) da instituição, em 28 de março.
De acordo com o comunicado da Aneel, o risco de mudança para bandeira amarela ou vermelha ao longo de 2023 é “menor do que 2%”, o que sinaliza um aumento de 5,6% nas tarifas das distribuidoras de energia, praticamente a metade dos 10,2% estimados pelo Copom. É um argumento a mais para ajudar o governo na queda de braço com o Banco Central pela redução da taxa básica de juros de 13,75%.
Para Talita Porto, vice-presidente do conselho de administração da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), entidade que facilita a negociação entre geradores e grandes consumidores no mercado livre de energia, a diversidade de fontes é um atributo importante da matriz brasileira.
“Cada tecnologia para geração de energia elétrica tem suas qualidades e beneficia o país de alguma forma, garantindo um fornecimento mais seguro, mais barato ou mais flexível. Essa complementaridade nos ajuda a enfrentar situações climáticas adversas, como a escassez hídrica de 2021, e é uma característica rara no mundo”, destaca.
No mercado livre, assim como no mercado regulado, o fornecimento contínuo de energia é assegurado por uma base de usinas que podem ser acionadas em momentos de maiores dificuldades para a geração. Os custos dessa segurança, incluindo a cesta de tarifas mais altas e os investimentos em novas linhas de transmissão, são compartilhados por todos os consumidores. “Quem mora perto de uma hidrelétrica no Norte também paga pela implantação da transmissão de uma eólica do Nordeste para o Sudeste”, exemplifica Charles Lenzi, da Abragel. Vale dizer que o mesmo ocorre com quem mora ao lado de uma eólica nordestina e contribui para o linhão de Belo Monte para o Sudeste.
Mais polêmicos do que essa cobrança universalizada são os incentivos do governo para a ampliação das usinas eólicas e solares no país, afirma Lenzi, referindo-se à recente isenção de impostos de importação, IPI e IPI/Cofins de painéis solares,
medida anunciada pelo governo em 29 de março e válida até o fim de 2026. “Não há sentido favorecer ainda mais esse segmento, enquanto os operadores de hidrelétricas pagam todos os impostos e contratam mão de obra nacional. Em vez de criar empregos aqui, o governo está criando na China”, reclama.
A facilidade com que projetos solares e eólicos conseguem financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é outro ponto de queixa dos fornecedores de energia hidráulica – o banco anunciou, logo no início da nova gestão, a liberação de R$ 3,5 bilhões para a construção de dois complexos eólicos e um solar, na Bahia e em Minas Gerais, que envolvem investimentos de R$ 10,6 bilhões.
“Gostaríamos de contar com a mesma boa vontade para as 110 PCHs e CGHs que estão em construção ou aguardando licenciamento, bem como para as outras 594 pequenas usinas até 50 MW em fase de registro na Aneel”, ecoa Alessandra de Carvalho, CEO da Associação Brasileira das Pequenas Centrais Elétricas e Centrais Geradoras Hidrelétricas (Abrapch). Nos últimos cinco anos, 117 dessas geradoras de pequeno porte entraram em operação no Brasil, acrescentando 938 MW de capacidade instalada no sistema, com investimentos de R$ 7,9 bilhões. “Mas poderiam ser muito mais. Nosso potencial para investimentos em pequenas centrais elétricas é da ordem de R$131 bilhões”, ressalta.
A presidente da Abrapch cita ainda como vantagem das hidrelétricas de pequeno porte – que são geralmente construídas com capital privado – o fato de serem entregues ao patrimônio da União depois de 30 anos de uso, quando ainda têm pela frente uma vida útil de mais 70 anos, em média. Atualmente, as 1.046 PCHs e CGHs em operação no país geram 5.560 MW (ou 5,5 GW), uma fração pequena da capacidade instalada de 206 GW, estimada pela Aneel.
Lenzi admite que os impactos ambientais produzidos por grandes projetos de hidrelétricas, principalmente na região Norte, podem ter contribuído para uma certa demonização do segmento de hidroeletricidade, que acabou reforçada com a ascensão das eólicas e solares. Segundo ele, as pequenas centrais hidrelétricas causam mais impactos positivos do que negativos na natureza. “Elas criam áreas de proteção ambiental, protegem as nascentes e seus reservatórios também complementam o fornecimento de água para uso humano e irrigação”, defende. Ele lembra ainda que, enquanto muitos países já esgotaram seus recursos hídricos para a produção de energia, o Brasil explorou até agora menos da metade do seu potencial.
Diogo Lisbona, pesquisador do Centro de Estudos em Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio Vargas (FGV CERI), pondera que a valorização da energia eólica e solar em detrimento da hidroeletricidade tem a ver não só com a geração mais barata, mas também por fazer parte de um movimento mundial pela descarbonização. “Essas novas fontes de energia melhoraram ainda mais a matriz brasileira, mas causaram uma certa depreciação das hidrelétricas, por mais que estas continuem sendo fundamentais no sistema pela capacidade de estocar água e de regular a geração rapidamente”, afirma.
O fato, segundo Lisbona, é que essas três fontes renováveis usam os argumentos que têm à mão na disputa por mais espaço no mercado de energia. “Cada uma delas está em busca de reserva de mercado. O segmento das hidrelétricas tem razão ao reclamar dos incentivos para solares e eólicas, mas também conseguiu emplacar um ‘jabuti’ que prevê a contratação de pequenas centrais na privatização da Eletrobras. Já os empreendedores de usinas solares, que reforçam o tempo todo a sustentabilidade de seus projetos, não divulgam os planos para o descarte dos painéis fotovoltaicos, que têm uma vida útil de apenas 15 anos. O que vão fazer com esse lixo eletrônico?”, questiona.
Hoje há energia de sobra no sistema, principalmente gerada por hidrelétricas, com representantes desse segmento estimando que 20% do potencial das usinas está deixando de ser produzido. “Mas quando o país atingir um crescimento de 2,5% no Produto Interno Bruto (PIB), vai precisar acrescentar 6 GW por ano. As pequenas centrais podem atender essa demanda futura, mas precisam ser viabilizadas hoje”, destaca Lenzi.
Por folha de São Paulo
https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/04/28/usinas-hidreletricas-continuam-a-ser-a-principal-fonte-do-pais.ghtml
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