Para ex-diretor da Aneel, custo dos investimentos em queda torna incentivos mais caros e só beneficiam gerador e consumidor com acesso ao mercado livre.
Os subsídios que incentivaram a construção de parques eólicos e a instalação de painéis de energia solar nos últimos anos se tornaram desnecessários com a queda acelerada dos custos dos investimentos nas fontes de energia renovável, diz Edvaldo Santana, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Para ele, os benefícios encarecem as tarifas pagas por consumidores cativos das distribuidoras e só favorecem consumidores com acesso ao mercado livre de energia, além dos geradores. Consultor de empresas e colunista do Valor, Santana acha que a redução dos subsídios e uma liberalização maior do mercado fariam bem ao setor.
Valor: Os reservatórios das hidrelétricas estão cheios e a oferta de outras fontes de energia cresceu, mas nossas tarifas continuam entre as mais altas do mundo. Por quê?
Edvaldo Santana: É provável que, mesmo se chover pouco, os reservatórios não esvaziem como na seca de 2021, porque os novos parques eólicos e os painéis solares vão gerar muita energia. O custo adicional para atender um aumento da demanda será praticamente nulo. Os custos das novas fontes estão caindo e o investimento em boa parte das usinas já está pago.
As tarifas continuam elevadas para os consumidores cativos das distribuidoras por causa dos subsídios. Mesmo que o custo adicional de geração seja zero, o consumidor terá que pagar mais por causa dos subsídios criados para incentivar as novas fontes renováveis. Para os grandes consumidores que acessam o mercado livre, os preços vão continuar afundando.
É uma grande falha do nosso sistema. Quando a seca esvaziou os reservatórios, o custo marginal de geração aumentou e os consumidores cativos foram chamados a pagar a conta. Eles ainda estão pagando pela crise passada e não se beneficiam da redução recente dos custos de geração como os que têm acesso ao mercado livre. O regulamento é muito cruel. Eu diria que hoje mais de 20% do valor pago pelo consumidor cativo corresponde a esses fatores.
Valor: O que poderia ser revisto?
Santana: Até o governo Fernando Henrique Cardoso, o consumidor cativo era obrigado a contratar da distribuidora 80% do seu consumo e podia contratar os demais 20% no mercado livre. No governo Lula, obrigou-se o consumidor a contratar 105%. Foi importante para expandir a capacidade instalada, mas criou esse problema. Agora há sobra de energia e o consumidor cativo continua contratando mais do que precisa, mas não pelo custo atual, muito mais baixo.
Valor: O senhor tem apontado a expansão de fontes renováveis de energia como responsável pela introdução de um grau de incerteza maior no sistema. Qual o risco?
Santana: O avanço da energia eólica e da energia solar foi muito importante, mas nos trouxe também um problema de confiabilidade, porque grande parte da oferta agora vem de fontes intermitentes, ou que variam muito. As turbinas de energia eólica só geram energia quando há vento, e os painéis de energia solar só produzem durante algumas horas do dia, quando há sol.
De um dia para o outro, é possível prever com alguma precisão a quantidade de vento e radiação solar com que se poderá contar, mas se mudar o tempo, ou ocorrer um imprevisto, e eles não puderem gerar energia, a única fonte que pode substituir isso rapidamente é a hidrelétrica. Mesmo com o sistema interligado, isso pode causar apagões em algumas regiões.
À medida que a oferta eólica e solar crescer, será preciso discutir quanto as hidrelétricas vão ganhar para assegurar a confiabilidade do sistema. Porque é um serviço que elas já estão prestando, praticamente de graça, e elas precisam ser remuneradas, como as termelétricas quando são acionadas.
Valor: Outros não poderiam cumprir esse papel?
Santana: Hoje, só as hidrelétricas podem responder a esse problema com a rapidez necessária para evitar apagões. Se esse serviço de confiabilidade for regulamentado, é possível que outros investidores tenham interesse no negócio. Tem o gás do pré-sal que alguém poderia pensar em usar para esse fim também. Uma regulamentação bem feita permitiria criar as condições necessárias para que essas alternativas aparecessem.
Com a capacidade instalada que temos hoje, o recurso escasso é a potência. É aquele cara que pode ligar na hora que for necessário para atender determinadas ocorrências, ou numa crise. Mais adiante, baterias para armazenar energia eólica e solar poderão garantir isso. Por enquanto, temos sorte, porque temos uma bateria enorme, os reservatórios das hidrelétricas.
Valor: Em que estágio está o desenvolvimento dessas baterias?
Santana: Temos alguma coisa na Austrália, na Coreia do Sul e nos Estados Unidos, mas muito pouco. Sabe-se como construir essas baterias, mas não se sabe ao certo por quanto tempo elas durarão. A partir de 2040, mais de 60% da oferta de energia elétrica no Brasil será gerada por fontes eólicas e solares, incluindo nessa conta a geração distribuída, ou seja, os painéis instalados pelos próprios consumidores nos telhados de suas casas. Poucos países vão alcançar esse volume tão rapidamente. Isso vai ser um problemaço, e falta pouco tempo.
Valor: Por que o senhor diz que os subsídios não são mais necessários para viabilizar investimentos no desenvolvimento dessas fontes?
Santana: Porque os custos estão despencando. O custo para investir num parque eólico hoje é metade do que era há quinze anos. O subsídio era importante para incentivar a expansão dessas fontes, mas hoje não é mais. O mesmo está acontecendo com a energia solar. Houve ganhos de escala enormes na fabricação de painéis e ganhos de aprendizado dos instaladores.
Os subsídios hoje estão gerando lucros extraordinários para as empresas que investiram nessas fontes. Nada contra os lucros. Fui um defensor dos incentivos no início, mas a permanência dos subsídios hoje tem mais a ver com a pressão que os grupos de interesse fazem no Congresso. A Aneel já compreendeu que os subsídios não são mais necessários.
Se eles deixaram de ser necessários para os investimentos na expansão dessas fontes, sua manutenção significa que as tarifas estão aumentando desnecessariamente, para cobrir os subsídios. A lei estabeleceu um cronograma de redução gradual, mas isso acabou gerando uma corrida de investidores para aproveitar os subsídios antes que sejam eliminados.
Isso gera muita desigualdade também, porque o subsídio não beneficia só o gerador da energia. O consumidor do mercado livre, que compra a energia produzida por essas fontes, tem redução nas taxas pagas pela transmissão e pela distribuição da eletricidade. O consumidor cativo, sem acesso ao mercado livre, não recebe nenhum desses benefícios.
Valor: Esses novos projetos serão viáveis?
Santana: Se todos que correram para entrar na fila e estão à espera da aprovação da Aneel fossem aprovados e executados, seria como dobrar a capacidade instalada hoje no Brasil, somadas todas as fontes. É muita coisa. Claro que muitos desses projetos não serão bem-sucedidos, mas, se metade der certo, significará quase 100 gigawatts de potência instalada.
Por isso acho que será inviável, até porque os projetos que forem aprovados pela Aneel terão que entrar em operação em cinco anos. Não há dinheiro para investir em tudo isso ao mesmo tempo. Ainda assim, uma boa parte vai acabar acontecendo, cerca de 50 gigawatts.
O ideal seria que todos pudessem negociar no mercado a energia que consomem, inclusive os consumidores residenciais, de baixa tensão. A rigor, o mercado livre abriu para eles com a geração distribuída. Se você instalar um painel no telhado, deixará de comprar da distribuidora. O que falta é regulamentar o excedente, para que você possa vendê-lo no mercado livre.
Hoje, as sobras são injetadas na rede. A cada cinco anos, a distribuidora faz um acerto de contas com o consumidor. Se ainda sobrar, ele perde essa energia. Como ela foi distribuída quando foi gerada, alguém utilizou. Mas o ganho que o consumidor poderia ter obtido se perde. O mais natural seria reduzir o subsídio e permitir ao consumidor vender no mercado livre.
Valor: Os contratos das distribuidoras privatizadas na década de 1990 vencerão em breve. O que esperar da renovação das concessões?
Santana: Não nos preparamos para essa situação e agora ninguém sabe o que fazer. O contrato da Light, no Rio de Janeiro, vence daqui a menos de três anos. O ministro [de Minas e Energia, Alexandre Silveira] disse outro dia que haverá renovação e ela não será onerosa. Ou seja, ninguém vai pagar pela nova concessão. Será mesmo a melhor solução? Tenho dúvidas.
A Light foi privatizada em 1996, por um valor relativamente baixo, e um dos motivos é que havia muito furto de energia na área que seria de sua responsabilidade. De lá para cá, o furto só aumentou. Então vamos favorecer a empresa que não conseguiu resolver o problema? Acho que o governo se precipitou. É preciso fazer audiências públicas e discutir isso melhor.
Acho que a renovação não precisa ser onerosa, como regra geral, até porque isso levaria a um repasse de custos que aumentaria as tarifas lá na frente, o que não faria sentido. Mas a empresa que fracassou na administração da concessão não deveria ter uma segunda chance. E temos vários casos assim. Basta ver os indicadores de avaliação de desempenho da Aneel.
A regra geral é abrir uma nova licitação para as concessões que vencerem, mas a lei permite também a renovação automática. Se é isso mesmo que o governo quer fazer, é preciso dizer claramente em que condições isso deve ocorrer. O risco é o novo governo querer interferir. Pode empurrar com a barriga e federalizar a concessão vencida se nada for resolvido a tempo.
Por Valor Econômico.
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