Um correto sinal de preços é essencial para o desenvolvimento de soluções flexíveis de consumo.
A transição energética da matriz elétrica brasileira vem se consolidando com a impressionante expansão de tecnologias de geração de energia renovável variável. A geração distribuída já soma mais de 19 GW de capacidade instalada, composta em sua quase totalidade pela fonte solar, segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o que representa um aumento de 440% nos últimos três anos. E a evolução da capacidade instalada de recursos distribuídos não deve estagnar tão cedo: projeção da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) indica a marca de 37 GW em 2032. Similarmente, a expansão de usinas eólicas e fotovoltaicas de grande porte, especialmente no mercado livre de energia, tem apresentado números cada vez mais expressivos.
Esses dados apontam para uma expansão do setor elétrico que não é mais coordenada por uma instituição central, mas decidida livremente pelos agentes. Acrescenta-se a esse contexto ainda o Projeto de Lei 414/21, que aborda a abertura completa do mercado livre, capaz de oxigenar ainda mais tal expansão.
Mais do que a expansão da geração, tudo indica que a solução passe pelas linhas de transmissão
Essas novas condições têm implicações importantes para a operação do setor elétrico: durante as horas de sol, o abastecimento de energia será provido principalmente por usinas fotovoltaicas, e o preço de energia deverá ser baixo. Já quando anoitecer, outras tecnologias deverão atender a demanda e, dependendo de qual for acionada, o preço poderá subir rapidamente, especialmente ao final da tarde, no horário de transição. As rampas de tomada e alívio de carga – quando há grandes variações no despacho das usinas – se tornarão cada vez mais acentuadas, demandando maior flexibilidade operativa dos ativos do sistema, que incluem os ativos de geração, as cargas, as redes de transmissão e os sistemas de armazenamento de energia.
Historicamente, essa flexibilidade para os momentos de grandes variações de carga ou de saída de usinas tem sido garantida principalmente por hidrelétricas. Esse tipo de recurso pode recuperar em parte o fôlego de investimentos nos próximos anos, tendo em vista a perspectiva anunciada pelo atual governo, durante o período de transição, de desenvolvimento de 98 projetos de menor porte (somando 12 GW), que estariam distantes de áreas mais sensíveis como terras indígenas e unidades de conservação.
Já se usarmos como parâmetro o último plano decenal da EPE, publicado no início de 2022, a fonte hídrica terá aumento de aproximadamente 8 GW ao longo da próxima década, por meio da expansão de pequenas centrais hidrelétricas e da repotenciação de usinas existentes. De qualquer forma, as restrições ambientais aplicadas a esse tipo de projeto combinadas ao custo relativamente baixo de outras fontes tendem a limitar o potencial de expansão da capacidade dos reservatórios.
Outra opção mais tradicional para os momentos de grande variação no setor são as usinas termelétricas, especialmente aquelas movidas a gás natural, por serem altamente flexíveis em ciclo simples, mas a expansão do setor com base em combustíveis fósseis pode destoar da determinação de eventuais metas de descarbonização dos sistemas elétricos.
Tudo indica que, mais do que a expansão da geração, a solução passe pelas linhas de transmissão. Na realidade, o uso das redes para elevar a flexibilidade do sistema já vem ocorrendo, por meio da programação de ociosidade de blocos de capacidade para que atuem no intercâmbio de energia em momentos de maior necessidade. Esse tipo de operação tende a aumentar, mas pode ser insuficiente nos horários em que houver demanda simultânea por flexibilidade em todas as regiões do país.
Nesse contexto, se por um lado o custo médio do mercado spot deverá cair com a expansão das fontes renováveis, que possuem custo marginal muito baixo, o oposto é vislumbrado para os custos com a rede de transmissão, que tiveram majoração de 64% no planejamento para o quinquênio até 2027 contra o montante previsto para o período de cinco anos que termina em 2026.
Os passos nessa direção já estão sendo colocados em prática: em outubro será realizado o maior leilão de transmissão do sistema elétrico brasileiro até o momento, segundo informações da Aneel, cujo objetivo principal é o escoamento de energia renovável existente nas regiões Nordeste e norte do Sudeste e Centro-Oeste e que deve movimentar R$ 19,7 bilhões em investimentos. Vale destacar, ainda, que essa tendência é global, segundo estimativas da consultoria BloombergNEF.
Em paralelo, um correto sinal de preços é essencial para o desenvolvimento de soluções de flexibilidade pelo lado do consumo e por meio de tecnologias de armazenamento. As elevadas taxas de rampa de carga ao final do dia poderiam, a princípio, levar a uma precificação ainda mais responsiva da carga no horário de ponta. Essa precificação poderia ser efetiva para o deslocamento do consumo para horários de custo mais baixo, caso seja percebida pelo consumidor em tempo real. Adicionalmente, o processo de arbitragem de preços – por meio do qual agentes obtêm a energia a valores baixos para vendê-la a preços altos nos momentos de maior demanda – possui um grande potencial para ajudar na integração de recursos de armazenamento, como já vem ocorrendo no sistema elétrico da California (Caiso).
Uma correta sinalização do preço necessita de bons dados de entrada no mercado. Os agentes precisam contar, na véspera, com representações precisas das restrições operacionais das usinas hidroelétricas e térmicas (unit commitment), uma melhor previsão de consumo e de limites de preço adequados (uma vez que preços mínimos elevados e preços máximos baixos reduzem o potencial de arbitragem e os incentivos para o deslocamento do consumo). Ainda, o desenvolvimento de um mercado intradiário, por meio do qual poderia ser realizado o ajuste fino da operação em relação à programação do dia anterior, aumentaria as possibilidades de integração dos recursos flexíveis.
Por fim, essa discussão abre a possiblidade de se revisitar o modelo de precificação e aquisição dos serviços ancilares (como a manutenção da frequência da rede), que são essenciais para o funcionamento do sistema elétrico e que hoje são prestados principalmente pelas hidrelétricas.
Por Valor Econômico
http://glo.bo/441LInY
No comment