Governo busca diálogo para transição, mas não escapa de polêmica com uso de fósseis


O planejamento da expansão deve manter o crescimento das renováveis como prioritários, mas uso do gás é tratado como um elemento essencial na mudança de chave.

Uma boa interlocução entre os  diferentes órgãos do governo será fundamental para definir a trilha que o país vai seguir na busca pela neutralidade das emissões de gases de efeito estufa em 2050. No setor elétrico, o planejamento de expansão da geração de energia deve manter a trajetória de crescimento das fontes renováveis na matriz, mas ainda apostando no uso intensivo do gás natural.

O anúncio de medidas de incentivo ao uso do gás natural, após a reunião do Conselho Nacional de Política Energética em meados de março, foi bem recebido pela indústria e segmentos do setor elétrico. Mas despertou reações de representantes de entidades ambientalistas, que veem a decisão como um retrocesso.

No Ministério de Minas e Energia, a orientação é de que os temas da transição envolvam não apenas o Ministério do Meio Ambiente, mas diversas pastas que tenham interesses no assunto. A ideia é estabelecer as conexões com as pessoas que vão estar na linha de frente da discussão, dado que a transição energética é um tema que tem muitos elementos transversais, explica o secretário de Planejamento e Transição Energética do MME, Thiago Barral.

“A gente tem feito esse esforço de estabelecer essa rede e esse compartilhamento de prioridades dentro de cada uma das pastas, com o enfoque da transição”, disse o secretário à Agência CanalEnergia.

A prioridade é energia limpa, segura e sustentável nos planos de expansão.

Thiago Barral, do MME

Segundo Barral, há dois processos paralelos. Um deles são os investimentos em fontes de energia limpa para sustentar o crescimento da demanda, e o outro o desafio de amadurecer novas tecnologias e modelos de negócio, para que na década de 2040, por exemplo, elas possam entregar uma descarbonização que vá além daquilo que a eólica, a solar, as hidrelétricas e a biomassa já entregam hoje. “Existem novas fronteiras para o desenvolvimento das energias limpas, e para isso e necessário um direcionamento claro dos recursos de pesquisa, desenvolvimento, inovação, e também dos marcos legais e regulatórios para acolher essas novas tecnologias.”

A prioridade é energia limpa, segura e sustentável nos planos de expansão. Não só elétrica, mas de toda a energia, afirma Barral. E o planejamento deve trabalhar para manter e até ampliar a renovabilidade e a limpeza da matriz energética, substituindo, por exemplo, fontes de energia com alta pegada de carbono por outras mais limpas, como o diesel  das térmicas na Amazônia por energia fotovoltaica. Além disso, tem também o papel do gás natural na descarbonização.

A matriz elétrica brasileira tem mais de 85% de participação de fontes renováveis, e mesmo com a escassez hídrica de 2021 ainda ficou no patamar bastante elevado de 78%, quando a média mundial é 27%, lembra o Diretor de Estudos Econômico-Energéticos e Ambientais da Empresa de Pesquisa Energética, Giovani Machado.

A EPE projeta crescimento no acesso e no uso da eletricidade, não apenas porque o consumo brasileiro per capita é relativamente baixo na comparação com outros países, mas porque uma das características da transição energética é a eletrificação, explica o diretor. Ela inclui o acesso da população a equipamentos elétricos e eletrônicos e a eletrificação direta de processos, equipamentos e veículos na indústria e no setor de transportes.

“Esses processos contribuirão para o alcance da neutralidade climática do Brasil em 2050, visto a alta participação de renováveis na matriz elétrica nacional. Importante destacar que a geração nuclear e a geração termelétrica a combustíveis fósseis com abatimento de carbono (em particular, com CCUS – captura, armazenamento ou uso de carbono) e/ou em co-queima com renováveis também podem ter papel nesse processo a fim de assegurar a confiabilidade do sistema elétrico com maior participação de renováveis variáveis”, explica Machado.

Há espaço para crescer, uma vez que a eletricidade no Brasil responde por cerca de 20% do uso final de energia. No cenário desafio da expansão do Plano Nacional de Energia 2050, o consumo será quase três vezes o atual.

Uma das possibilidades é de que termelétricas a gás natural existentes possam no futuro substituir total ou parcialmente o combustível  por biometano, e se essas plantas utilizarem CCUS, a substituição geraria emissões negativas. O setor pode ainda vender créditos de carbono para que atividades de difícil abatimento possam compensar suas emissões de gases de efeito estufa.

Fósseis

Para os ambientalistas, o uso de combustível fóssil, como o gás natural, ainda que como um elemento de transição, é justamente o ponto em que o governo se afasta das expectativas geradas pelos compromissos climáticos do país. O físico e especialista em mudanças climáticas e energia, Shigueo Watanabe Jr, destaca que apesar da mudança de governo, o MME não tem por hábito mudar a direção, mantendo nas áreas de petróleo e de eletricidade agendas que operam independentemente de quem ocupa a cadeira no momento.

O especialista do ClimaInfo é um dos críticos da expansão das termelétricas a gás, que, segundo ele, tem crescido ao longo do tempo de forma mais acelerada do que outras fontes do ponto de vista do planejamento. Um movimento incompatível com qualquer meta climática que se queira alcançar, afirma. “A gente está vendo com grande, grande preocupação, porque o MME e este governo, os sinais que eles estão dando vão na direção contrária dos compromissos climáticos que o pais assumiu.”

Watanabe critica a estratégia de usar o setor elétrico como âncora para a entrada de gás natural liquefeito importado, para viabilizar uma rede de terminais de gaseificação espalhados pela costa brasileira, e lembra que isso vem acontecendo há anos. Agora o fluxo está mudando um pouco, por conta dos planos da Petrobras de entrar pesado na exploração da margem equatorial brasileira, que é a costa que vai do Amapá ao Ceará. Um sinal no sentido contrário ao que o mundo está esperando, diz.

Sinais do governo vão na direção contrária dos compromissos climáticos.
Shigueo Watanabe, do ClimaInfo

O papel da estatal é visto no governo como estratégico na transição energética, o que inclui a área de combustíveis fósseis e de geração de energia limpa, com investimentos em eólica offshore, por exemplo.

E se a política em direção aos fósseis não vai mudar, sugere Watanabe, que pelo menos o governo use os recursos, mas assuma o compromisso de reduzir pela metade o que se produz hoje em petróleo em 2050, além de não abrir mais nenhum novo campo de exploração a partir de 2030. “Qualquer coisa nesse sentido pelo menos é um sinal na direção certa. E a gente quer provocar esse pessoal para pelo menos assumir esse tipo de compromisso, que eu acho que é fundamental.”

Ricardo Baitelo, que é gerente de Projetos do Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), vê uma maior possibilidade de interação entre as diferentes secretarias e ministérios do governo atual, além de uma abertura maior para absorver as preocupações da sociedade civil e dos movimentos de base.

O que está vislumbrado no planejamento, tanto no PDE quando no PNE, não deve mudar tanto nos próximos 20 anos. Deve ter, por um lado, um crescimento grande de energia eólica e solar, o que vai trazer uma boa contribuição para as metas de neutralidade na área de energia. Mas o empenho do governo será mesmo no controle do desmatamento e na redução das emissões do setor agropecuário, que são os mais impactam, no caso brasileiro.

Baitelo destaca, no entanto,  a preocupação com a exploração de petróleo e gás, diante dos planos da Petrobras de ampliar a produção, atingindo, no caso do óleo, o patamar de 5 milhões de barris por dia. Há, além disso, a intenção do governo de fortalecer a indústria do gás, e o lobby no Congresso Nacional para o financiamento pelo consumidor da construção de gasodutos para as térmicas da Lei da Eletrobras.

“São dois movimentos controversos. A gente vê o próprio Lula anunciando de um lado subsídios, mais desoneração para a cadeia solar. Quando a eólica começou foi no governo dele, em 2008/2010, e ele quer fazer a mesma coisa, quer dar esse apoio à solar e isso vai na linha do discurso do governo de ser o campeão do clima, de reduzir as emissões, de ser o protagonista. Mas, por outro lado, a gente sente que essas emissões do petróleo, seja para exportação ou para uso nacional, e do gás que vai servir a termelétricas, a gente tem a impressão que talvez o governo pense em esconder essas emissões atrás da redução de emissões de outros setores. O desmatamento, que tem uma contribuição muito maior para o Brasil”, afirma Baitelo.

Desoneração da cadeia solar e uso do gás são movimentos controversos.
Ricardo Baitelo, do Iema

Para a Amanda Ohara, coordenadora da iniciativa Energia e Amazônia, do Instituto Clima e Sociedade, o principal desafio que o país tem pela frente em relação ao setor elétrico é a questão dos licenciamentos ambientais do empreendimentos de geração, para garantir que os projetos que vão entrar não tenham impacto socioambiental local muito elevado. Ela aponta a necessidade de contratação de novos profissionais para repor o quadro de pessoal do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, eliminando o gargalo de capacidade humana para lidar com esses processos que existe hoje na autarquia.

Do ponto de vista de clima, reforça a especialista, o setor elétrico é um trunfo que o Brasil tem, devido à composição de sua matriz. “A gente tem reservatórios que podem operar como baterias. Então a gente consegue operar usinas eólicas e solar… porque a gente tem essa flexibilidade aí nos reservatórios”, explica a coordenadora do ICS, que defende uma adequada remuneração aos geradores pelos serviços que as fontes trazem para o sistema.

“É simbólico e é sinérgico para a redução de custos de eletricidade no Brasil atuar na transição energética, retirando as fontes fosseis e investindo nas renováveis”, afirma Ohara. Ela avalia que a contratação de térmicas inflexíveis como as previstas na lei da privatização da Eletrobras, para ancorar o desenvolvimento do mercado de gás, pode prejudicar o consumidor. E que a reindustrialização do país pode ser feita com base em energias limpas.

Expansão

Há consenso que a expansão do setor deve ser feita principalmente com fontes renováveis. No Brasil, alinham-se nesse sentido dois incentivos que são essenciais na transição energética, na visão do presidente da PSR, Luiz Augusto Barroso: a energia mais limpa é também a mais barata. Essa combinação dá um diferencial ao país e pode ajudar na certificação perante os consumidores que compram essa energia em outros países de que ela é limpa.

“Qual é a ameaça aqui? A ameaça é a construção mandatória de fontes emissoras que não são competitivas, como as térmicas da Eletrobras. Essa construção pode sujar a matriz brasileira, e ao sujar a matriz brasileira a gente não atende mais esses requisitos de certificação de energia limpa que os consumidores, sobretudo os europeus, tanto gostam e valorizam”, alerta o executivo.

Diferencial do país pode ajudar na certificação de energia limpa perante os consumidores que compram essa energia em outros países

Luiz Barroso, da PSR

Barroso vê o risco de um efeito cruzado nas sinalizações em direção às energias fósseis, que pode impedir o Brasil de se qualificar nos mecanismos de certificação de energia nos mercados compradores, sobretudo na União Europeia.

Em relação à transversalidade da expansão, ele insiste que o Brasil vai precisar de uma boa governança das ações ligadas à participação do Brasil para gestão do risco climático global. Lembra ainda que a questão da economia verde envolve mais uma dúzia de órgãos da Esplanada dos Ministérios, o que vai exigir uma boa coordenação.

O presidente do Fórum do Meio Ambiente do Setor Elétrico, Marcelo Moraes, pontua que a transição energética global é diferente da brasileira. Ele destaca que o setor já contribui há cem anos para a redução da emissões de carbono no país, e em razão dessa composição diferenciada da matriz, ela deve ser feita a partir de requisitos específicos e de forma a atender aos interesses locais.

“Em 2022, 92% da energia gerada no Brasil foi proveniente de fontes renováveis. Isso não tem paralelo nenhum no mundo. Dito isso, a nossa transição energética deve ser feita, mas dentro de parâmetros e a uma velocidade que atendam os interesses do país, dos agentes do setor e, principalmente, dos consumidores de energia.”

É impossível abrir mão do uso do gás na transição.
Marcelo Moraes, presidente do Fmase

Na opinião do executivo do Fmase, o Brasil não precisa partir para tecnologias novas ou caras de imediato, porque não temos necessidade urgente de limpar a matriz. Por isso, esse processo pode ser feito de forma paulatina. É o caso, por exemplo, do hidrogênio.

Moraes considera impossível abrir mão do uso do gas na transição, porque entende que para o avanço das renováveis intermitentes será necessário um backup, que pode ser hidrelétrica, térmica, ou a combinação de ambas as fontes.

Para o coordenador do fórum, o próprio secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco, demonstrou abertura para tratar do tema. “Senti o MMA bem aberto para discussão e ele falou que a interlocução com o MME vai se dar também em intensidade e bom tom.”

Por Canal Energia.
https://bit.ly/3lVvjAd

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