Passou da hora de os grandes consumidores atuarem para o bem comum: o fim dos subsídios

Quem tem alguma noção da teoria dos números, foco de estudos de virtuosos como Pascal e Fermat, conhece a série de Fibonacci. Fibonacci, contração para filho de Bonacio, pai de Leonardo Pisano, formulou a série em 1202. É uma sequência que, olhada do terceiro número, o seguinte é sempre a soma dos dois anteriores (1, 1, 2, 3, 5,…, 89, 144, 233). Tal sequência cresce rapidamente, de modo que seu centésimo número é da ordem dos 354 quintilhões.

A página de abertura do Fórum Mundial Econômico de Davos, versão 2023, tem alguns dados acerca das dez maiores economias. A décima, a Itália, tem um PIB de US$ 2 trilhões. Os Estados Unidos, o mais rico, o PIB é superior a US$ 25 trilhões. Os cinco maiores têm mais que 50% de toda riqueza, e 25 países, do total de 182, detêm 84% de tudo que é produzido. Detalhe: das nações que compõem o Brics, só o Brasil e a África do Sul não estão entre as dez maiores economias do mundo. Não por acaso os dois estão nos continentes de mais desigualdade, qualquer que seja o ponto de vista.

Passou da hora de os grandes consumidores atuarem para o bem comum: o fim dos subsídios

Talvez por esse vergonhoso resultado, 200 multimilionários divulgaram carta em que se dispõem a pagar mais impostos. Na carta, afirmam: “Nos primeiros dois anos da pandemia os dez homens mais ricos dobraram suas riquezas, ao passo que 99% das pessoas viram sua renda cair”.

Mas trato de outro tipo de desigualdade, a elétrica, que, paradoxalmente, tende a agravar-se com a diversificação da matriz e com a geração distribuída (GD), principal e mais promissora transformação do setor elétrico nos últimos 15 anos. A GD ficou conhecida depois do crescimento vertiginoso do uso de painéis fotovoltaicos nos tetos das residências. Os consumidores passaram a ser também produtores de energia – ou prosumer.

Em quase todo o mundo a instalação desses painéis é subsidiada. E a fórmula é a mesma, com pequenas variações: fazer os demais consumidores assumirem parte dos investimentos de quem quis e poderia fazê-los. Como só há radiação solar em 10 horas de um dia, nas 14 restantes o prosumer recebe energia da distribuidora, como eu e você, mas não paga ao utilizar a rede. Como a concessionária precisa receber pelo que gastou, o consumidor “sem painel” paga pelo prosumer.

Mas os painéis trazem enormes benefícios para a sociedade, como diminuir perdas e postergar obras de geração, sem contar o uso de energia limpa. O problema é de alocação, isto é, quem deve, se é que deve pagar pelo subsídio, e se ele é ainda fator crítico.

Jurerê Internacional, no norte da ilha, é uma área chic de Florianópolis. Lá há um local ainda mais chic, o Amoraeville, um cantinho com belas residências. Um ótimo espaço para caminhadas, onde há uma boa pista cercada por um bosque bem preservado. Um pedacinho da Mata Atlântica. De um bloco de 65 casas, nesse trajeto, onde vivem cerca de 260 pessoas, houve um aumento considerável da quantidade de painéis fotovoltaicos. Algo entre 30 e 35 dos imóveis já os têm.

Não é difícil entender o porquê. A tarifa da Celesc, distribuidora de Santa Catarina, é das menores do Brasil. E, comparada com o Nordeste, a radiação em Florianópolis é bem modesta. Isso tornaria relativamente longo o prazo de retorno do investimento, inviabilizando-o.

Sucede que o subsídio diminuirá para quem empreender a partir de 2023. Isso soou como estímulo à proliferação de painéis já em 2022. Mais: de 2023 em diante os consumidores de todo Brasil pagarão pelo subsídio à GD, embora ela aconteça mais numa que noutra região. A tarifa da Celesc, por exemplo, crescerá com a montagem de painéis no Rio Grande do Sul, em São Paulo ou no Pará.

Isso impulsionou o catarinense, sergipano, paulista etc. a acelerarem a construção de sua fotovoltaica. Pagar ou receber o subsídio determinou a conduta de free rider (carona) ou passageiro clandestino, que é a disputa escancarada de interesses individuais, em detrimento do interesse de terceiros. E nem lembram mais que a premissa era minimizar a emissão dos gases de efeito estufa.

Veja o contraste, a desigualdade elétrica. No centro de Florianópolis fica o Morro do Mocotó, onde moram 25 mil pessoas das classes D e E, várias abaixo do limite da pobreza. Tem uma vista maravilhosa para as baías Sul e Norte. O acesso principal é a 200 metros da Assembleia Legislativa e do Tribunal de Justiça. Lá não há painéis fotovoltaicos. Nem eólicas. São essas pessoas, exceto as que possuem direito à tarifa social, que subsidiam a solar do Amoreaville, Alphaville e do Morumbi, que podem até zerar a conta de luz.

Fato semelhante, com volume muito maior de subsídios, acontece com o desconto de 50% no uso da rede para quem adquire energia de fontes renováveis. Só os grandes usuários do mercado livre aproveitam esse benefício, mas a conta, acima de R$ 25 bilhões em 2026, é repartida com o consumidor cativo, inclusive do Morro do Mocotó.

E a perspectiva é que a GD, em 2030, ultrapasse de 60 GW, numa proporção em linha com a série de Fibonacci, o que elevará os custos para os demais consumidores, também como em Fibonacci.

É a típica, e inescapável, tragédia dos bens comuns. A corrida individual por vantagens, racionalmente ou não, agirá contra os interesses dos demais consumidores, com aumento de tarifas, e esgotará o bem comum, no caso, o montante finito de recursos para patrocinar os subsídios.

Como não se espera quaisquer mudanças nessa (evitável) corrida desenfreada por subvenções, ainda que desnecessárias, resta contar com iniciativas como a dos 200 muito ricos. Passou da hora de o grande consumidor e o “Amoreaville” atuarem para o bem comum – o fim dos subsídios. A má notícia: não há brasileiros na lista de voluntários comprometidos com o pagamento de mais impostos.

A partir de abril, a plataforma “Papodeenergia”, sem fins lucrativos, monitorará contrastes elétricos tais como os apontados neste artigo.

Por Valor Econômico.
Imagem: Estadão.
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-contraste-eletrico.ghtml

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