A forma como a Eletrobras se organizará para a empreitada também implicará mudanças de paradigma
O setor elétrico brasileiro (SEB) tem no horizonte importantes transformações. Algumas já em curso, como a diversificação da matriz elétrica (matriz), que ficará mais renovável. Não é tarefa simples chegar em 2030 com mais de 45 GW de geração distribuída (GD) com solar fotovoltaica, quando era zero em 2012. A tarifa reduzirá para uns e pode aumentar para outros.
Depois de 2040, a soma da potência das fontes eólica, solar e biomassa se aproximará de 50% do total da matriz. Isto implica uma oferta mais vulnerável à variabilidade dessas novas fontes, que só produzem quando há vento ou sol, para ficar nessas duas.
Desde 2015 a transição energética é tema de seis em dez grandes eventos realizados no Brasil. Mas, neles, é rara a preocupação em adaptar o sistema elétrico à acelerada e conveniente mudança na matriz. Fica a compreensão de que a construção de linhas de transmissão seria o suficiente. Não é. É uma condição necessária, mas não suficiente.
A flexibilidade, hoje um atributo não valorado, é o fator crítico para garantir confiabilidade
É natural que a demanda de eletricidade varie ao longo de um dia. Contudo, na iminente configuração da matriz, com maior participação de renováveis, a oferta também será variável, uma das características da intermitência da eólica e solar. Em fração de segundos o volume de energia produzido por essas fontes pode reduzir de forma significativa.
E a GD deixa essa situação ainda mais complexa. Se há, por exemplo, 14 GW de fotovoltaicas instaladas em residências, que representava 16% da demanda às 12h30 do dia 22 de julho de 2022, nem as distribuidoras, muito menos o operador do sistema, sabem exatamente quanto desse total estará em uso num determinado instante. Mas a distribuidora e o operador precisam ficar atentos para essas flutuações do lado de consumidores que também produzem energia.
O site do Operador Nacional do Sistema (ONS) mostra, de certa forma, como foi isso em 22 de julho. Uma hora da manhã as eólicas produziam 10,5 GW e as hidrelétricas (UHEs) 42,6 GW, quando a demanda era 61 GW. Às 6 h, com demanda de 60 GW, as eólicas caíram para 8,8 GW e as UHEs subiram para 44,1 GW. Depois, 14h30, com demanda de 72 GW, as eólicas geravam menos de 8 GW, contra 54 GW das UHEs.
Na medida em que as horas avançavam, o quadro era ainda mais nítido. As eólicas, por condições inadequadas de vento, reduziam a produção. Às 16h30, a solar, que injetava quase 3,6 GW na rede (o maior volume do dia), começou a reduzir a geração, exatamente no intervalo em que a demanda caminhava para seu máximo. As UHEs não só responderam pelo aumento do consumo como compensaram, instantaneamente, a menor produção da eólica e da solar.
Há, assim, alguma incerteza no balanço instantâneo entre oferta e demanda. Como minimizar as consequências dessa incerteza é o que necessita ser feito. A segurança do suprimento exige mudanças na forma de operar o sistema. Dado que há um grau de incerteza, mesmo durante um dia, a oferta precisa ser flexível para atuar diante dessa nova responsabilidade. Além dos tradicionais fornecimentos de potência (MW) e energia (MWh), o sistema elétrico deve ser hábil para prover flexibilidade.
A flexibilidade, ou adaptabilidade, consiste na habilidade para se adaptar a uma nova exigência. Na eletricidade, é a capacidade de garantir e/ou restabelecer a estabilidade do sistema. A flexibilidade, hoje um atributo não valorado, é o fator-crítico para garantir confiabilidade.
O problema é que a flexibilidade não pode ser oferecida por qualquer fonte. As baterias respondem imediatamente às exigências da rede, mas a permanência não é longa. As hidrelétricas, por outro lado, respondem rapidamente e mantêm a estabilidade por longo período.
As termelétricas, sobretudo a gás natural, também são boas provedoras de flexibilidade, muito mais na duração que na resposta instantânea. E são bem melhores que a nuclear que, com as tecnologias atuais, leva alguns dias para começar a injetar energia na rede, mas permanecem meses a gerar continuamente.
Os consumidores são ótimos provedores de flexibilidade. Suas cargas podem ser desligadas em curtíssimo prazo. Quando isso acontece, a demanda é reduzida, o que diminui a necessidade de geração por outras fontes.
São, portanto, mudanças que fogem à lógica anterior de evolução do SEB, por isso chamei-as de transformação. A flexibilidade, ainda sem foco no Brasil, é a razão do sucesso do novo paradigma.
Outra transformação mais sutil é a necessidade de adaptação do SEB à “entrada” de um player expressivo, no caso, a Eletrobras. Não é trivial estimar os reflexos da incorporação de 13.000 MW médios, tudo no ambiente livre (ACL). A oferta de energia no ACL crescerá mais ainda, o que é ótimo, apesar de ser um mercado restrito a grandes usuários. É inescapável a ampliação do ACL. Do contrário, os benefícios serão de poucos.
E combinar o mercado livre tradicional com o novo mercado de flexibilidade é outro elemento que afetará e poderá ser afetado pelas estratégias da Eletrobras.
A forma como a Eletrobras se organizará para a empreitada também implicará mudanças de paradigma. A cultura de ilhas técnicas conceituadas, mas com mando político, dará lugar a uma cultura empresarial voltada à eficiência, veloz, que refletirá nos negócios de todo sistema elétrico.
É esperado que a Eletrobras, agora privada, volte a ser protagonista na expansão da capacidade instalada, fundamental para a segurança energética. Não é razoável tal empresa ser “apenas” coadjuvante na diversificação da matriz.
E a Eletrobras, por sucessivos descumprimentos de cronograma, estava há uma década impedida de participar de leilões de transmissão, apesar de ser a maior transmissora. A possibilidade de uma grande organização disputar um leilão já resulta numa potencial redução de tarifas, mesmo sem transformações.
Fonte e Imagem: Valor Econômico.
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/transformacoes-eletricas.ghtml
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