Só faz sentido exigir o licenciamento para projetos que de fato se tornarão realidade
A crise hídrica que o país atravessa reacende a necessidade de novos projetos de geração de energia elétrica, capazes de afastar a ameaça do racionamento. Nessas circunstâncias, ganha força a realização de mais leilões de energia ou de reserva de capacidade, modalidade de contratação que pode ocorrer de forma extraordinária e simplificada, conforme MP 1.055/2021, que instituiu a Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (CREG).
Embora a conjuntura recomende urgência, a participação nesses leilões está condicionada, naturalmente, ao cumprimento de requisitos como demonstração de saúde financeira, qualificação técnico-jurídica e licenciamento ambiental. Mas o que seria à primeira vista uma proteção ao meio ambiente e ao mercado, a exigência de que os projetos tenham ao menos licença prévia para participar dos certames, cria disfuncionalidades que oneram o setor público e os empreendedores e atravancam a competição.
Licença antecipada simula a virtude da proteção do ambiente e não resguarda o mercado dos aventureiros
O licenciamento tem tradicionalmente três fases: a licença prévia (LP), que aprova a concepção e a localização do projeto; a licença de instalação (LI), que permite sua implantação; e a licença de operação (LO), que autoriza a exploração da atividade. Como a proteção ao meio ambiente é matéria de competência concorrente, o licenciamento pode ser realizado por órgãos estaduais ou pelo Ibama – nos casos de projetos de grande porte ou elevado potencial de dano.
De acordo com a Resolução Conama 237/1997, o prazo máximo para obtenção de LP junto ao Ibama é de doze meses. Contudo, dado o elevado número de projetos submetidos, o contingente reduzido de servidores nas repartições ambientais, sua usual falta de recursos e acanhada infraestrutura, não é incomum que os doze meses sejam ultrapassados.
Em consequência, para que um projeto obtenha a LP – condição mínima ambiental para participar dos leilões – os empreendedores devem apresentá-lo aos órgãos ambientais com pelo menos um ano de antecedência. A incerteza sobre as datas dos certames ajuda a impulsionar essa corrida pelo licenciamento, gerando um ciclo vicioso que sobrecarrega as instituições ambientais e adiciona custos significativos e desnecessários aos projetos, antes mesmo da disputa. E sem sequer saber se serão, de fato, executados.
A exigência não só abarrotou os órgãos ambientais, que deixam de lado tarefas concretas para cuidar de empreendimentos potenciais, mas criou um mercado paralelo no qual projetos com licença são comercializados como produtos. O prazo habitualmente exíguo entre o anúncio dos certames e o cadastramento valorizou ainda mais essas licenças, transformando-as em uma moeda que torna projetos atrativos independentemente de seus méritos técnicos e econômicos.
Nesse comércio, empresas especializadas concebem projetos que, após licenciados, são vendidos quando um leilão se aproxima. Dois fatos tornam essa realidade ainda mais sui generis, pois após o leilão esses projetos são: usualmente modificados para que se adaptem à realidade técnica e econômica e submetidos, necessariamente, a nova etapa de licenciamento.
A concessão de licenças para empreendimentos de papel também gera reserva de mercado, pois compromete as cotas de uso local de recursos hídricos e de emissão de particulados. Enquanto a licença concedida a um empreendimento hipotético for válida, não será possível o licenciamento de outro naquela localidade, de modo a evitar que o nível admitido de impacto ao meio ambiente seja ultrapassado. É o caso de Macaé-RJ, com 12 GW de térmicas já licenciadas, o que representa mais da metade da capacidade térmica total a gás natural instalada no país. Isso num único município.
Uma simples consulta à base de dados on-line do Ibama evidencia o elevado número de empreendimentos que requerem LP e não saem do papel. Dos 94 projetos de usinas hidrelétricas, apenas 54 alcançaram a etapa de operação. No caso das termelétricas, a situação é mais grave: dos 82 processos relacionados a usinas dessa modalidade, apenas seis têm LO emitida. No leilão A-5/2021, realizado em setembro, 80 GW de projetos apresentaram licenciamento ambiental – foram contratados só 860 MW. No leilão A-3/A-4, ocorrido em julho, 48 GW dispunham do licenciamento e apenas 984,7 MW foram contratados.
A exigência de licença para participar dos certames já foi flexibilizada uma vez e deu certo. No Leilão 01/2019, que contratou energia e potência para atender ao sistema isolado de Boa Vista-RR, foi exigido licenciamento apenas dos empreendimentos que ganharam a licitação, no prazo de 180 dias após a outorga. Assim, um número maior de projetos pôde participar – o que ampliou a disputa – e os órgãos ambientais se debruçaram apenas sobre aqueles que seriam implementados, tornando o processo mais eficiente e menos oneroso.
Em vez de exigir que os órgãos ambientais adotem “prazos compatíveis” de licenciamento para viabilizar a participação de empreendimentos na contratação simplificada de reserva de capacidade, como fez a CREG recentemente, o caminho é flexibilizar essa exigência, seguindo o exemplo de Roraima. Sem ela, alcança-se o mesmo objetivo de maneira mais rápida e racional.
O licenciamento ambiental é imprescindível, mas só faz sentido exigi-lo de projetos que de fato se tornarão realidade. A licença como condição à participação de leilões apenas simula a virtude da proteção do meio ambiente e não resguarda o mercado dos aventureiros, seu propósito original. Repensar essa tortuosa, disfuncional e onerosa engrenagem pode trazer múltiplos benefícios à sociedade: 1- evitar custos descabidos ao empreendedor e ao poder público; 2- desafogar os servidores dos órgãos ambientais; 3- ampliar a competição dos leilões; e 4- impedir a mercantilização das licenças ambientais e seu uso como moeda.
Fonte e Imagem: Valor Econômico
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/a-licenca-ambiental-como-moeda.ghtml
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