Instrumento para medição do nível d'água na barragem da usina hidrelétrica de Furnas, em São José da Barra (MG) 14/01/2013 REUTERS/Paulo Whitaker


Crise no setor elétrico deve levar a discussão ampla sobre usos múltiplos da água, eficiência energética e planos estruturais para racionamentos

Na opinião do ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energia (EPE) e atual presidente da consultoria PSR, Luiz Barroso, a crise no setor elétrico deve levar a uma discussão mais ampla sobre temas como os usos múltiplos da água, eficiência energética e até a adoção de planos estruturais para racionamento de energia no futuro. O Brasil passa o período seco com o menor índice de chuvas dos últimos 91 anos, o que gerou incertezas sobre o fornecimento de energia, devido à baixa na geração hidrelétrica. Para Barroso, a situação é grave, mas ações do governo podem evitar interrupções no suprimento. Ele lembra, no entanto, que certas medidas precisam ser implementadas rapidamente, como o programa para incentivar trocas nos horários de consumo da indústria. Segundo Barroso, se o próximo período chuvoso repetir o deste ano, o setor vai “passar no talo” em 2022. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Valor:

Valor: O que significa a nota recente do Operador Nacional do Sistema (ONS) que indica esgotamento dos reservatórios em novembro?

Luiz Barroso: O diagnóstico do ONS está alinhado com as análises da PSR. O ONS não disse que a geração seria inferior à demanda, o que levaria a cortes de carga, mas sim que os níveis muito baixos de armazenamento tornam necessário usar a reserva operativa para evitar blecautes no fim do ano. Não é uma situação inédita, mas requer atenção pois o suprimento de energia fica mais vulnerável a imprevistos, como a falha de usinas de maior capacidade.

Valor: Qual é o risco de ocorrer blecautes no segundo semestre?

Barroso: As simulações da PSR mostram que o risco de problemas de suprimento no segundo semestre é cerca de 14%, podendo aumentar para 29% se o crescimento da demanda for maior do que o previsto atualmente ou se a chuva piorar. O risco não é desprezível, mas nossas análises mostram que as ações do governo podem ser decisivas para mitigá-lo.

Valor: As medidas adotadas pelo governo até agora afastam o risco?

Barroso: A situação de suprimento é grave e requer grande atenção e capacidade de gestão. O governo já tomou medidas relevantes para a segurança com resultados concretos, como a flexibilização dos limites de armazenamento e vazão das hidrelétricas. Foram publicadas portarias para o acionamento da geração sem contratos e há coordenação para aumento da importação de energia. Os resultados estão começando a aparecer. Também há estudos para aumentar os limites de transmissão do Nordeste para o Sudeste, pela flexibilização do critério de confiabilidade elétrica. Ainda há a possibilidade de ações pelo lado da demanda, como um programa para redução voluntária de consumo através de sinais de preço. O sucesso deste conjunto de medidas pode reduzir os riscos de problemas de suprimento. Também existe aquela oferta que o governo não controla, como a geração distribuída, que vem crescendo muito e pode ajudar.

Valor: Qual vai ser o papel, na crise, do programa da resposta pela demanda, que estimula indústrias a consumir fora dos horários de pico?

Barroso: A trajetória é grave e complicada, todo recurso é importante. Não acho que esse programa é o que vai nos salvar. É importante, mas as medidas de flexibilizar o uso múltiplo da água, trazer novas ofertas e importação são mais relevantes. Por outro lado, não fazer o programa traria problemas, pois perderíamos a chances de ter mais recursos, que podem ser importantes na crise. Também pode acontecer de o programa chegar muito tarde para ajudar.

Ficou claro que temos duas perguntas muito relevantes para responder: a quem pertence e quanto custa a água?

Valor: Até quando o governo precisa implementar o programa?

Barroso: O mais rápido possível, já estamos atrasados. É necessário definir um mecanismo de formação de preço e comprar a redução de maneira não burocrática e rápida de implementar, caso contrário vai ser tarde demais para ajudar.

Valor: Quais são os riscos do quadro atual de dependência da geração das térmicas?

Barroso: As térmicas são construídas para operar quando necessário e são confiáveis. No entanto, elas podem ficar indisponíveis por diversas razões, como manutenção ou falta de combustível.

Valor: Quais são os riscos para o fornecimento em 2022?

Barroso: O principal fator de risco para 2022 é o período de chuvas, que começa em dezembro. Para o próximo ano, ainda há tempo para agir. Se quisermos atuar com mais precaução, podemos contratar nova oferta emergencial, como reserva. São Pedro pode ajudar ou não. Por exemplo, em 2017, a região Nordeste tinha 5% de armazenamento, mas o período úmido foi favorável e encerramos março de 2018 com 41%. Outro fator favorável para o suprimento em 2022 é a entrada prevista de nova capacidade de geração não hidrelétrica, que reforça a oferta e diminui a dependência à hidrologia.

Valor: O que seria necessário para afastar os riscos em 2022?

Barroso: Nas análises da PSR, uma afluência de cerca de 70% da média histórica no ano de 2022 seria suficiente para afastar problemas de suprimento físico. Este indicador depende do crescimento da demanda, disponibilidade de oferta não hidrelétrica, gestão dos usos múltiplos da água, entre outros fatores. Mas, se ocorrer o mesmo período úmido de 2021, passamos 2022 “no talo”.

Valor: Há mais preocupação com 2021 ou 2022?

Barroso: Com 2021, pois o tempo para ações é menor e a criticidade dos reservatórios já é uma realidade.
Valor: O governo deveria preparar um plano de racionamento?

Barroso: O operador tem planos operativos para implementar cortes emergenciais junto às distribuidoras, mas o Brasil não tem regras definidas sobre como um racionamento seria organizado sob as óticas física e comercial. Organizar na correria não é bom. Seria saudável ter um plano organizado e com regras claras a todos os agentes, não visando a situação conjuntural de 2021, mas de forma estrutural.

Valor: Qual seria o maior desafio de um racionamento hoje?

Barroso: A organização do racionamento físico se assemelha a 2001, mas há muitos desafios comerciais que hoje são diferentes. Há novos atores, como o mercado livre. O termo “racionamento” tem um significado jurídico particular em relação aos contratos e ao equilíbrio das distribuidoras.

Valor: Por que passamos por tantas crises nos últimos anos?

Barroso: Pela falta de informação correta e ferramentas computacionais melhores para o planejamento e a operação. Também pela dificuldade de governança e “enforcement” setorial, que deveria permitir a implementação de correções apontadas pelo planejamento, mas que tem impactos comerciais nos agentes. São problemas conhecidos e que são apontados há anos.

Valor: O que os aumentos nos preços da energia significam para o consumidor de baixa renda?

Barroso: O maior uso das térmicas e algumas das medidas tomadas vão impactar a conta de luz. O Brasil já está em segundo lugar no ranking das tarifas residenciais mais caras do mundo e isto afeta o bolso da população. Chegamos aqui por uma série de erros do passado, e estamos aos poucos melhorando. Por exemplo, as renováveis diminuem o custo de compra da energia. Subsídios estão sendo removidos. Mas não devemos cometer novos erros. Se a tarifa crescer, extratos mais vulneráveis da população demandariam mais recursos de política pública. Hoje, quem cuida deles são os subsídios pagos pela Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), que pode sofrer um maior uso para atendê-los.

Valor: Há risco de a Aneel não reajustar a bandeira tarifária por preocupação com a inflação?

Barroso: O reajuste da bandeira é importante como sinal ao consumidor, e também para já transferir ao consumidor hoje custos que ele pagará amanhã de qualquer forma, nos reajustes tarifários. O uso das tarifas para controle de inflação foi o que na década de 90 arruinou financeiramente o setor.

Valor: Quais são os riscos para o sistema elétrico brasileiro em meio às mudanças climáticas?

Barroso: A resiliência do sistema a eventos severos entrará nos critérios de planejamento. O país precisa de um ecossistema de fontes, cada uma agrega valor. Isso deve ser escolhido sob a lógica econômica.

Valor: Que lições a crise deixa?

Barroso: Além de mexer nos critérios de planejamento, podemos aproveitar a crise para cuidar da gestão do uso da água. Ficou claro que temos duas perguntas muito relevantes para responder: a quem pertence e quanto custa a água? Também poderíamos aproveitar para organizar o plano nacional de eficiência energética, que já vem sendo estudado pela EPE.

Valor: O brasileiro desperdiça muita energia?

Barroso: O consumidor residencial hoje é bem eficiente, mas a intensidade energética da população está crescendo, então é fundamental que equipamentos novos sejam fabricados no maior índice de eficiência energética possível.

Valor: Como poderíamos ter mais eficiência energética?

Barroso: O Brasil tem muito espaço para a eficiência energética no segmento comercial e industrial. Escritórios, fábricas, farmácias, supermercados podem fazer investimentos adicionais para isso. Um exemplo é o ar condicionado central, que é muito ineficiente. Também existe espaço para deixar edifícios mais eficientes. A eficiência é o megawatt mais barato que qualquer sistema pode ter.

Valor: Quais são os riscos no mercado livre em meio à escalada nos preços de curto prazo?

Barroso: A situação do segundo semestre inspira cuidados, os preços de energia vão subir. É necessário monitorar as operações. Os agentes também precisam ser cautelosos em achar que os preços vão ficar altos para sempre, alguns estão comprando energia para o ano que vem a preços elevados, e a hidrologia é incerta. Independentemente dessa situação, é fundamental que cada agente faça sua gestão de risco e tome cuidado nas decisões de compra e venda. É importante que o mercado tenha segurança para que as operações financeiras ocorram com normalidade. O aperfeiçoamento das regras de segurança é fundamental.

Fonte e Imagem: Valor Econômico
https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/08/02/crise-na-energia-abre-debate-amplo-sobre-agua.ghtml

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