Visitas institucionais, no entanto, são apontadas por especialistas advogados do setor como uma evidente estratégia do governo de se antecipar aos processos que devem chegar ao Judiciário.
O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, tem feito um périplo por gabinetes de ministros de tribunais superiores e desembargadores para alertar sobre a crise hídrica. As visitas institucionais, no entanto, são apontadas por especialistas advogados do setor como uma evidente estratégia do governo de se antecipar aos processos que devem chegar ao Judiciário. São esperadas ações judiciais em resposta às medidas excepcionais programadas para evitar o desgaste político de decretar um novo racionamento de energia.
As ações planejadas pelo governo virão a partir da medida provisória (MP), ainda em fase de elaboração, para ajudar o sistema elétrico a atravessar a atual crise. A primeira versão de minuta da MP, que já circula no setor, prevê a criação de uma câmara decisória (a Care) formada por ministros que vão centralizar os comandos necessários para afastar o risco de apagão.
Na visão dos advogados, quebrar o rito decisório dos órgãos envolvidos — como ANA, Ibama, Aneel, ONS entre outros — para privilegiar a geração de energia por hidrelétricas em detrimento de outras atividades econômicas é um convite à judicialização.
Ao se encontrar com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, no último dia 9, Albuquerque foi orientado pelo magistrado a não ficar só nele e procurar todos os ministros da Corte para conversar sobre o assunto. Albuquerque também ficou de encaminhar um documento ao tribunal explicando com detalhes a situação hídrica do país.
No STF, ele também já esteve com o ministro Gilmar Mendes, que era advogado-geral da União em 2001, quando o país passou pelo chamado “apagão”. Coube a Gilmar a estratégia, na época, para evitar que a judicialização da crise hídrica inviabilizasse as ações planejadas pelo governo do então presidente Fernando Henrique.
No mesmo dia que encontrou Fux, a agenda de Albuquerque também registrou uma visita ao presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Humberto Martins. Na ocasião, ele estava acompanhado do secretário de Energia, Cristiano Vieira.
Segundo relatos de integrantes dos tribunais superiores, a antecipação de Albuquerque causou boa impressão aos ministros, que apontaram que ele parece estar adotando uma postura “responsável” diante da crise.
A movimentação em busca de blindagem também alcançou juízes de primeira e segunda instâncias, especialmente presidentes de Tribunais Regionais Federais (TRFs), e foi identificada na agenda de compromissos oficiais do ministro. Todos os encontros foram realizados num prazo aproximado de um mês.
“São exatamente as autoridades [do Judiciário] que monocraticamente (individualmente) podem decidir suspender uma coletividade de ações sobre o mesmo tema. Se amanhã uma associação entrar com uma liminar para afastar aquela decisão baseada na MP, ela será apreciada por um juiz de 1º grau, depois por um desembargador no TRF. Porém, o presidente do TRF ou o presidente do STJ ou ainda o presidente do Supremo poderá individualmente suspender até mesmo decisões colegiadas, sem analisar o mérito”, resumiu um advogado, ouvido pelo Valor. Ele admitiu já ter sido procurado para consultas informais por “potenciais clientes”, a maioria é de entidades empresariais.
Nos encontros com os magistrados, Albuquerque chegou a externar a preocupação com a judicialização em relação a medidas de preservação do volume de água dos reservatórios das hidrelétricas, o que tende a impactar a logística por hidrovias, a atividade turística e a irrigação de lavouras.
Os advogados chamam a atenção para eventual ilegalidade da estrutura de gestão que o governo sinaliza implantar com a MP. A medida prevê a retirada de poder de órgãos técnicos para passá-lo para as mãos do colegiado de ministros. Ocorre que a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/97) determina que “a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades”.
Mesmo com a participação da Agência Nacional de Águas (ANA) e do Instituto do Meio Ambiente (Ibama) talvez não seja suficiente. Isso porque, no entendimento de especialistas, as decisões deveriam envolver os comitês das bacias. Além disso, isso poderia gerar uma discussão no STF sobre o princípio constitucional do “retrocesso ambiental”, por descartar a participação de todos ou, pelo menos, da maior parte dos entes que deveriam participar na tomada de decisão.
Outra frente de discussão judicial que poderá ser inaugurada, conforme sinaliza a minuta a qual o Valor teve acesso, está relacionada ao eventual comando de redução compulsória do consumo sem decretar o “racionamento”. O ex-diretor da Aneel e principal executivo da RegE Consultoria, Tiago de Barros Correia, explicou que usar uma estratégia diferente para buscar a mesma finalidade vai penalizar grande parte do setor.
Correia observou que grande parte dos contratos dispõe de cláusulas para atenuar as perdas financeiras em caso de racionamento, previsto na Lei 10.848/04. Essa redução de obrigações, disse ele, se dá com um corte dos volumes de energia contratada por geradoras e distribuidoras. A redução é feita na mesma proporção da necessidade de corte no consumo definido no programa de racionamento.
“O problema é não fazer isso e gerar saldos financeiros futuros. Acho que esse é o risco. Então, tem que tratar, tem que reduzir, tem que ter o nome de racionamento. Não pode querer inventar um nome diferente, pois se vier com cara e cheiro de racionamento vai gerar uma disputa, porque um dos lados não vai querer deixar que a cláusula seja exercida”, afirmou o ex-diretor da Aneel.
Hoje, o governo nega que será preciso adotar um racionamento. A declaração desta semana do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), de que o governo partirá para uma racionamento “educativo” serviu de alerta para o setor.
“É importante que esse programa voluntário e educativo já garanta o direito de redução de contrato, porque as geradoras e as distribuidoras vão continuar expostas [a perdas financeiras] e, lá na frente, vai bater na conta de luz do consumidor”, disse o ex-diretor da Aneel. Ele explicou que o repasse para a fatura poderá ser feito em pedidos, junto à agência, de reequilíbrio econômico da concessão por meio de revisões tarifárias extraordinárias (RTE).
No segmento de geração, os prejuízos já começaram a ser calculados pelo aumento do déficit na produção das hidrelétricas (risco hidrológico), afetadas diretamente pela falta de chuvas. Já para as distribuidoras, o prejuízo está relacionado à sobrecontratação que cresce desde o início da pandemia e aumenta com a queda na demanda.
O ex-diretor da Aneel lembra que a lei do racionamento vale somente para o “mercado regulado”, formado pelas distribuidoras. Porém, após o apagão de 2001, muitos contratos bilaterais no mercado livre, que reúne grandes consumidores, passaram a incorporar o mesmo princípio da lei, para garantir a redução de volumes contratados e evitar perdas financeiras — e, assim, ninguém lucra ou tem prejuízo com a crise.
“Os contratos no mercado livre sequer precisam ter cláusulas especiais. O próprio Código Civil disciplina todos os contratos e lá estão os conceitos ‘ato do príncipe’, ‘força maior’, ‘caso fortuito’, que podem ser acionados. Basta ter um ‘nexo causal’, pois não pode vir uma eólica e alegar problemas relacionados à crise hídrica”, afirmou o ex-diretor.
Fonte e imagem: Valor Econômico
https://valor.globo.com/brasil/noticia/2021/06/23/ministro-de-minas-e-energia-percorre-tribunais-para-blindar-mp-e-medidas-contra-o-apagao.ghtml
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