Christianne Dias, da ANA: Desafio na gestão dos recursos hídricos

Criada há 19 anos, a Agência Nacional de Águas tem avançado no desafio de regular e promover a gestão dos recursos hídricos no país, mas ainda há muito o que fazer diante de um cenário futuro que aponta para o aumento significativo do consumo, acompanhado de períodos de secas mais frequentes e com menor disponibilidade de água. “Os eventos críticos são uma realidade e devem passar a ocorrer com maior frequência, o que nos chama atenção a pensar em como estarmos mais resilientes a esses períodos”, afirma a diretora-presidente, Christianne Dias, em entrevista à Agência CanalEnergia.

As crises hídricas que nos últimos anos afetaram a vida da população brasileira em diferentes pontos do país, especialmente na região Nordeste, mostraram a necessidade de aprimoramento das condições de operação dos reservatórios em algumas bacias e sistemas hídricos. Cada vez mais complexo, esse trabalho de gestão tem exigido maior integração entre os atores envolvidos, entre órgãos gestores estaduais, comitês de bacias e setores usuários, destaca Christianne. Um ator importante nesse processo é o Operador Nacional do Sistema Elétrico, com quem a ANA mantém uma parceria produtiva na troca de informações e na construção de regras de operação dos reservatórios das usinas que assegurem os usos múltiplos da água, especialmente em períodos de crise.

A área de atuação da agência de águas deve ser ampliada com a eventual aprovação no Congresso Nacional do PL 3.261, que atualiza o marco legal do saneamento básico e atribui à autarquia a missão de estabelecer as normas de referência do setor. O projeto substituiu a MP 868, que caducou no último dia 3. Segundo Christianne, “as normas serão instituídas de forma progressiva e construídas a partir das experiências em curso no país”, mas será necessário ampliar o corpo técnico para o exercício das novas atribuições. Confira a entrevista:

Agência CanalEnergia: A ANA foi criada com a finalidade de regular o uso e coordenar a gestão das águas junto aos diferentes usuários. Em que pontos a agência já conseguiu avançar e quais são os aperfeiçoamentos que estão no horizonte?

Christianne Dias: Já caminhamos muito, mas ainda há muito a fazer. O desafio da gestão de recursos hídricos é garantir a segurança hídrica, propiciando o acesso à água em quantidade e qualidade adequada aos diversos usos, e também não podemos deixar de pensar nas ações de prevenção a eventos hidrológicos críticos, especialmente secas e inundações.

Sobre eventos críticos, temos alcançado ótimos resultados com as Salas de Situação nos estados, que a ANA ajuda a criar e manter, a instalação do Observatório da Escassez Hídrica, do Monitor de Secas no Semiárido e das Salas de Crise.

Porém isso não basta. O crescimento da demanda por água – que deve crescer 24% até 2035 – e a redução da disponibilidade em regiões e períodos em que a demanda supera a oferta de água vem exigindo da Agência o aprimoramento de mecanismos para apoiar a decisão, com maior participação dos usuários e demais atores envolvidos. A ANA vem avançando na regulação dos usos de recursos hídricos, como por exemplo por meio dos Marcos Regulatórios de uso da água e Alocação Negociada, estabelecendo normas de alocação de água, outorga e fiscalização do direito de uso, de forma alinhada com os Planos de Recursos Hídricos.

Está em implementação na ANA o Programa de Melhoria Regulatória, que institui a Agenda Regulatória, os mecanismos de Avaliação de Impacto Regulatório, e a gestão do Estoque Regulatório, concorrendo para ampliar o controle social e a transparência dos atos emanados pela ANA.

Agência CanalEnergia: Existem ainda muitas lacunas regulatórias? Quais são as prioridades da agenda da autarquia?

Christianne Dias: Este ano tivemos novidades na condução da agenda regulatória, tornando público esse debate pela primeira vez. Aprovamos a Agenda Regulatória para o exercício de 2019, com destaque para a regulação de temas relevantes como a definição de regras de operação para Sistemas hídricos prioritários, que tenham enfrentado condições hidrometeorológicas desfavoráveis que levaram a baixo reservamento; a definição da Estrutura Tarifária e procedimentos de ajuste e revisão das tarifas para operação do Projeto de Integração do São Francisco (PISF); e a revisão dos procedimentos operacionais da cobrança pelo uso de recursos hídricos, em função da entrada em operação dos sistemas de informação que possibilitam simplificar os procedimentos. Temos muito a caminhar e contamos com os setores usuários participando desse debate conosco, para construirmos regras que fortaleçam a segurança jurídica e ajudem na atração de investimentos.

 

“O desafio da gestão de recursos hídricos é garantir a segurança hídrica, propiciando o acesso à água em quantidade e qualidade adequada aos diversos usos (…)”

 

 

Agência CanalEnergia: A agência vai crescer de tamanho se assumir a missão de cuidar também da área de saneamento. A agência está se preparando para isso? O que seria necessário em termos de orçamento, de estrutura física e de pessoal?

Christianne Dias: Pela proposta que se debate no Poder Executivo e no Legislativo, caberá à ANA instituir as normas de referência nacionais sobre o setor. Isso é positivo pois harmoniza a regulação do setor, que continuará ser feita pelas agências locais. Tais normas abrangerão os quatro componentes do setor de saneamento: abastecimento de água potável; esgotamento sanitário; limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos; e drenagem e manejo de águas pluviais urbanas.

O campo de trabalho da ANA a partir dessa mudança será vasto e desafiador, porém as normas serão instituídas de forma progressiva e construídas a partir das experiências em curso no País, primando pela escuta e robustez técnica, inclusive com a adoção da análise de impacto regulatório das normas propostas. Também estamos prontos para travar um diálogo aberto e transparente com os setores usuários.

Nossa preparação para o trabalho já se iniciou, com um Grupo de Trabalho que está reunindo informações e interagindo com diversos atores do setor, colhendo experiências exitosas e lições. Esse GT também vem preparando a proposta de equipes de trabalho, que deverão incorporar novos servidores a partir da aprovação do novo regramento. As novas competências a serem absorvidas pela ANA vão requerer expansão de seu corpo técnico, seja em quantidade de servidores, seja na aquisição de novas competências e conhecimentos.

Agência CanalEnergia: Um estudo da ANA mostra que em pouco mais de uma década o uso da água para diferentes finalidades deve aumentar 24% e passar de 2,5 milhões de litros por segundo. Isso vai exigir um esforço maior da agência para manter um diálogo construtivo entre todos os atores envolvidos?

Christianne Dias: Certamente, a crescente complexidade do processo de gestão de recursos hídricos vem exigindo, cada vez mais, uma maior integração entre os atores envolvidos, com destaque para a atuação cooperada entre os entes do Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos. Como expusemos no nosso lema para este ano, “A Água é Uma Só”, e, portanto, é fundamental pensarmos em ações em conjunto com órgãos gestores estaduais, em articulação com os comitês de bacias e com o envolvimento dos diversos setores usuários.

Na gênese da Política Nacional de Recursos Hídricos já se previa a necessidade de integração e participação dos principais atores da bacia, e, em particular, a necessidade de articulação do planejamento de recursos hídricos com o dos setores usuários e com os planejamentos regional, estadual e nacional.

Como desafios, temos a busca da melhor equação entre a oferta e a demanda de água, consoante com a disponibilidade hídrica e os cenários prospectivos de desenvolvimento nas diferentes bacias hidrográficas. Isso requer o fortalecimento de políticas complementares de estímulo ao uso racional dos recursos hídricos e a difusão das práticas de reuso da água, além do incentivo ao pagamento por serviços ambientais e a adoção de mecanismos de controle de perdas nos sistemas hídricos.

Agência CanalEnergia: Como evitar que a pressão de usuários, especialmente de setores econômicos, prevaleça sobre outros? Que instrumentos a agência reguladora tem para arbitrar isso?

Christianne Dias: Além da nossa atuação na regulação por meio das normas de alocação de água, pela outorga e fiscalização do direito de uso, orientados pelos Planos de Bacia, a Agência tem investido em instrumentos e metodologias que asseguram maior transparência e controle social sobre as suas deliberações, ampliando a solidez das regras definidas. Queremos tornar cada vez mais participativo o processo de estabelecimento de Marcos Regulatórios, elaborados a partir de consulta presencial ou pela internet aos órgãos gestores de recursos hídricos estaduais, operadores dos reservatórios, comitês de bacia e demais interessados. Esse é um exemplo de mecanismo que contribui para a consolidação das regras e critérios sobre os usos da água em um sistema hídrico específico, orientando e delimitando a alocação de água.

Esse conjunto de mecanismos não torna o processo de alocação de água imune às pressões dos setores econômicos, posto que elas sempre existirão, mas permitir o confronto dos diversos interesses (e todos os interessados) num ambiente técnico, participativo e transparente, o que tende para o alcance de soluções equilibradas e negociadas para o uso da água.

 

“Como desafios, temos a busca da melhor equação entre a oferta e a demanda de água, consoante com a disponibilidade hídrica e os cenários prospectivos de desenvolvimento nas diferentes bacias hidrográficas”

 

 

Agência CanalEnergia: Como você classificaria o diálogo com os investidores do setor elétrico e com o ONS? Qual é a importância do papel do operador do sistema elétrico na interlocução com a agência e com os demais usuários?

Christianne Dias: Historicamente, ANA e ONS mantêm uma parceria produtiva no sentido de troca de informações, colaboração para a construção de regras para a operação de reservatórios e efetivação dessas regras, permitindo a proteção dos usos múltiplos da água e o aumento da segurança hídrica das bacias, especialmente na ocorrência de eventos hidrológicos críticos.

O ONS tem também o importante papel de ser o interlocutor com os agentes operadores dos aproveitamentos hidrelétricos, garantindo a observância das condições de operação estabelecidas.

Temos ampliado essa articulação e a troca entre o corpo técnico e diretivo dos órgãos vem sendo ampliada. Nas salas de crise, por exemplo, construímos juntos soluções. Um exemplo disso foi a norma operativa que agora passa a valer para a Bacia do Rio São Francisco. Nessa regra, que passou a ser aplicada em primeiro de maio, o setor elétrico terá previsibilidade e gestão sobre as vazões que poderá usar, até a faixa de reservação de 60%. Essa regra foi construída ao longo de mais de três anos, em parceria com o Operador e os empreendedores.

Agência CanalEnergia: Que lições a crise hídrica dos últimos anos, especialmente no Nordeste, trouxe para todos?

Christianne Dias: Os eventos críticos são uma realidade e devem passar a ocorrer com maior frequência, o que nos chama atenção a pensar em como estarmos mais resilientes a esses períodos. Experiências nesses momentos apontaram a necessidade de aprimoramento das condições de operação dos reservatórios em algumas bacias e sistemas hídricos com o objetivo de, no longo prazo, aumentar sua resiliência para o enfrentamento de períodos de estiagem mais críticos.

Como cerne da nossa atuação nesse assunto, temos a dos princípios do aproveitamento múltiplo, racional, harmônico e integrado da água, além da necessidade de se garantir a segurança hídrica das bacias na área de influência das infraestruturas, tanto em situação de normalidade quanto em períodos de escassez hídrica.

Outro aprendizado importante diz respeito à criação de espaços adequados para a articulação entre os múltiplos atores envolvidos, que possibilitem o alinhamento de informações e perspectivas futuras, a investigação e pactuação de soluções e o acompanhamento de sua implementação. Esses espaços se concretizaram nas Salas de Crise, onde representantes dos órgãos gestores de recursos hídricos, dos usuários de água – inclusive do setor elétrico, da Defesa Civil, de órgãos ambientais e de comitês de bacia, entre outros, se reúnem para a coordenação e efetivação de medidas para aumento da segurança hídrica e proteção dos usos da água. Essa articulação é rica e torna nosso setor mais forte.

Agência CanalEnergia: O tratamento que tem sido dado à gestão dos recursos da bacia do São Francisco pode se transformar em referência para situações de crise em outras bacias, ou a situação dela é muito peculiar?

Christianne Dias: Esse é um “case” que já resulta de experiências anteriores. Aprendemos com as crises e vamos semeando novas possibilidades de atuação. Nossas ações na crise do São Francisco foram construídas com base em aprendizados anteriores, como as crises do Paraíba do Sul e do Sistema Cantareira, e nos permitiu aprofundar e consolidar as práticas de trabalho coordenado e voltado a soluções para redução de impactos aos usos da água e aumento da preparação e resiliência em médio e longo prazos.

Em um período relativamente curto, aprendemos muito. A primeira Sala de Crise instalada pela ANA, em 2013, foi para acompanhar a evolução das condições hidrometeorológicas da bacia do rio São Francisco, e esse debate subsidiou a adoção pela ANA de medidas regulatórias importantes para a preservação dos estoques de água armazenados e aumento da segurança hídrica na bacia. Sem as medidas de reduções de defluência acordadas na Sala de Crise, Sobradinho, mais importante reservatório da cascata, teria esgotado seu volume útil em novembro de 2014, obrigando a operação sob severa restrição de liberação de água e comprometendo o atendimento dos usos e usuários que captam no seu lago e no trecho de jusante até a foz do rio São Francisco.

As mesmas medidas permitiram a recuperação gradual dos volumes armazenados, apesar das condições hidrometeorológicas desfavoráveis. Como resultado, os reservatórios de acumulação do Sistema Hídrico do Rio São Francisco atualmente apresentam situação mais confortável de armazenamento em relação a anos recentes, com Sobradinho em 48% e o reservatório equivalente em 58% atualmente. Essa situação permitiu a entrada em vigor da resolução que estabelece novas condições de operação do Sistema Hídrico do Rio São Francisco, elaboradas em conjunto com os estados e o Comitê de Bacia.

Agência CanalEnergia: Se a proposta de abertura do mercado do gás natural aumentar a disponibilidade do produto para a geração de energia termelétrica, como imagina o governo, pode haver muito mais usinas demandando água em um futuro não muito distante. Como se preparar para isso?

Christianne Dias: A água não pode ser uma barreira para o desenvolvimento do país, e não será com uma boa gestão. Do ponto de vista da operação de reservatórios e sistemas hídricos para a gestão dos recursos hídricos, cuja prioridade é garantir a segurança hídrica e promover o acesso sustentável aos usos múltiplos da água, a preparação para mudanças de cenários, tanto na oferta quanto na demanda, passa pela atuação articulada e coordenada com as partes interessadas, especialmente no sentido de implementar regras flexíveis e adaptáveis, que permitam um nível adequado de previsibilidade e atendam às prioridades legais e aos planos de recursos hídricos. Como dizemos aqui na ANA, “A Água é uma Só”, e o monitoramento e acompanhamento constantes e a implementação dos instrumentos de regulação do uso da água são fundamentais para fazer cumprir essas regras e garantir que seus objetivos sejam alcançados.

 

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Fonte: Canal Energia.

 

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