Crise hídrica no país com a maior reserva de água doce do mundo

Para o país que tem a maior reserva de água doce do mundo, o Brasil vem sofrendo secas demais. Só nos últimos anos, enfrentamos uma seca severa em São Paulo e em outros Estados do Sudeste, decretamos racionamento de água em Brasília e observamos perplexos à maior sequência de anos de seca registrada em um Nordeste já castigado por estiagens.

Tentamos solucionar essas crises da forma mais tradicional possível: com campanhas para a população economizar água, rodízios, racionamentos e obras de infraestrutura "cinza" – construção de canais, transposições e reservatórios. Essas soluções podem ter funcionado no passado, mas num cenário de mudanças climáticas agravado, não serão mais suficientes. O Sistema Cantareira é uma prova disso: poucos anos depois da crise hídrica de São Paulo, seus reservatórios voltaram a sofrer e hoje estão com apenas um terço da sua capacidade. Precisamos ser mais criativos se quisermos evitar crises piores.

Não que a infraestrutura tradicional, construída, deva ser descartada. Mas, ao lado dessas grandes obras de concreto e aço, podemos pensar em outro tipo de infraestrutura "verde e natural": as florestas e a vegetação nativa que ajudam a reabastecer lençóis freáticos, controlam a erosão do solo, evitam enchentes e garantem mais qualidade à água que abastece nossas cidades. Trata-se da 'infraestrutura' que a natureza nos oferece e está presente nas margens dos rios e reservatórios e localizadas em pontos específicos de bacias hidrográficas.

O primeiro passo para se ter uma infraestrutura natural eficiente é também o mais simples e barato: conservar as florestas ainda existentes. Os benefícios da conservação são bem conhecidos, como a regulação do clima, a melhor qualidade do ar, a renovação de nutrientes no meio ambiente, o provimento de água, a proteção da biodiversidade, a beleza cênica, a polinização, a manutenção da fertilidade e o controle da erosão dos solos, a provisão de recursos naturais e matérias-primas para a indústria.

Uma vez conservadas as florestas que ainda estão em pé, precisamos dar um passo além e começar a plantar florestas, porque em muitos mananciais elas não mais existem. A recuperação de vegetação nativa, o plantio de florestas e a revitalização de nascentes são cruciais para proteger os reservatórios. Isso não é novidade e o poder público sabe bem dessa necessidade. Porém, falta um direcionamento adequado de recursos públicos para o reflorestamento.

A grande novidade dos mais recentes estudos no setor é mostrar que esse gargalo pode ser resolvido com capital privado ou com recursos de empresas de saneamento de capital misto. A melhor forma de convencer empresas que plantar florestas é um bom negócio é mostrar que as florestas não só produzem bens comuns para toda sociedade: elas também podem dar lucro.

Restaurar 4 mil hectares de florestas em áreas de pastagens suscetíveis à erosão geraria benefício líquido de US$ 69 milhões

Em uma série de estudos que serão publicados nos próximos meses – começando agora em setembro com um trabalho voltado para o Sistema Cantareira -, procuramos fazer, para a infraestrutura natural, os mesmos cálculos que são feitos para uma obra convencional. Colocamos os custos, os ganhos, as taxas de desconto e o retorno de investimento no papel. Avaliamos os custos e benefícios de se plantar florestas para melhoria da qualidade e disponibilidade de água para as estações de tratamento.

Os resultados foram surpreendentes: restaurar 4 mil hectares de florestas em áreas atualmente ocupadas por pastagens com alta susceptibilidade à erosão geraria um benefício líquido de US$ 69 milhões, poupando 210 mil toneladas de produtos químicos e quase 100 mil MWh de energia elétrica para tratamento de água. O retorno sobre investimento poderia atingir 28% para a empresa de abastecimento. Resultados igualmente animadores poderiam ser atingidos em outros sistemas, como no Guandu do Rio de Janeiro e Jucu na Grande Vitória.

Este é só um exemplo de como a infraestrutura natural pode prover ao mesmo tempo benefícios econômicos e ecológicos, protegendo nossos mananciais, reduzindo custos do tratamento de água e resultando em retorno para investidores. Entretanto, há outro ponto que ainda não é possível colocar na ponta do lápis: o quanto as florestas podem, ao mesmo tempo, mitigar os efeitos das mudanças climáticas e ajudar a adaptar nossas cidades aos impactos do aquecimento global.

Apesar de incalculáveis, as consequências do desequilíbrio ambiental são perceptíveis no nosso dia a dia. Vemos episódios cada vez mais frequentes de populações sofrendo com eventos climáticos extremos – como tempestades violentas, secas extremas, ondas excessivas de calor ou frio, incêndios, furacões -, o que impacta diretamente na economia global e na qualidade de vida das pessoas.

Preservar e resgatar áreas verdes, além de minimizar os efeitos das alterações climáticas e proporcionar maior resiliência às comunidades diante dessas mudanças, permite que a água da chuva penetre e seja gradualmente armazenada no solo, garantindo a recarga do lençol freático e a maior disponibilidade de água com qualidade. Encontrar soluções e adotar políticas eficientes nessa direção são necessidades imediatas.

Investir na natureza vale a pena. Se não começarmos a pensar no componente verde da infraestrutura na hora de planejar as obras de saneamento, corremos o risco de continuar enfrentando crises hídricas de tempos em tempos. É hora de fazer jus ao título de país com a maior reserva de água doce do mundo. Plantando e conservando florestas, podemos fazer com que essa água seja usada da melhor forma: abastecendo nossas cidades, nossa produção agrícola e nossa população.

Rachel Biderman é diretora-executiva do WRI Brasil e membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza.

André Ferretti é gerente de Economia da Biodiversidade da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza e coordenador geral do Observatório do Clima

 

 

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Fonte: Valor Econômico.

 

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