Uma das características mais evidentes da deterioração da governança no Brasil é a perda da autoridade do Poder Executivo, espaço que foi ocupado pelo Judiciário, como se vê na Operação Lava Jato, como também pelos Tribunais de Contas. Eles eram vistos no passado apenas como tomadores de contas e sempre atrasados em detectar irregularidades na aplicação de recursos pelos diversos órgãos da administração pública.
Isto está mudando como se pode ver claramente nas decisões recentes do Tribunal de Contas da União (TCU) na área de geração de eletricidade.
Cerca de 65% da eletricidade no País é gerada em usinas hidrelétricas de grande porte, dentro do território nacional. Há ainda espaço para sua expansão na Região Norte e se ela não se concretizar haverá dificuldades para garantir eletricidade à população, a não ser que se queimem combustíveis fósseis, o que tem vários inconvenientes, a começar pela emissão dos gases responsáveis pelo aquecimento global.
Fontes alternativas, como biomassa, energia eólica, pequenas centrais hidrelétricas, energia fotovoltaica e outras, contribuirão, mas sem hidrelétricas o sistema não se mantém em pé. Mesmo que a contribuição de energia eólica – como está ocorrendo – aumente muito, haverá necessidade de armazenar energia quando o vento não soprar ou soprar nas horas erradas. Não é fácil armazenar grandes quantidades de eletricidade, a não ser nos reservatórios das usinas hidrelétricas, e não serão baterias elétricas apenas que o farão. O uso de gás natural em usinas termoelétricas poderá representar uma fonte de energia importante numa fase de transição, mas a custos mais elevados.
O que isso significa é que hidrelétricas com reservatórios vão continuar a ser indispensáveis por muitos anos, apesar de algumas organizações ambientalistas questionarem e se oporem frontalmente a essa opção. O argumento principal usado é o de que os reservatórios das usinas hidrelétricas inundam grandes áreas da floresta, prejudicam as populações ribeirinhas e afetam reservas indígenas. Esses prejuízos são em geral superdimensionados e mesmo que ocorram precisam ser comparados com os benefícios resultantes.
Só para dar um exemplo, três novas hidrelétricas que se pretende construir na Amazônia – Sumaúma, Quebra Remo e Inferninho – poderiam gerar cerca de 1 milhão de quilowatts (suficientes para suprir as necessidades de 2 milhões de famílias), mas inundariam mil quilômetros quadrados. O desmatamento que está sendo feito hoje na Amazônia por causa do avanço da fronteira agrícola (legal e ilegal) é de cerca de 6 mil quilômetros quadrados por ano. Ele se repete todos os anos e já foi de mais de 20 mil quilômetros quadrados por ano. A área inundada pelas hidrelétricas acima citadas é de cerca de mil quilômetros quadrados, e apenas uma vez.
Outro exemplo é o da usina hidrelétrica de Belo Monte, que foi planejada para gerar cerca de 11 milhões de quilowatts no período de vazão máxima das águas, o que só se verifica em menos de seis meses por ano. Na média, vai gerar 35% dos 11 milhões de quilowatts, apesar do enorme custo das máquinas, dimensionadas para gerar o dobro. Além disso, tem um reservatório relativamente pequeno, de 478 quilômetros quadrados (menos de um décimo do que se desmata hoje na Amazônia por ano), ou seja, vai funcionar “a fio d’água”, o que significa que estará sendo desperdiçada uma grande capacidade de geração de eletricidade. Em lugar de atender às necessidades de 20 milhões de famílias, a usina atenderá a um número bem menor. Em contraste, há usinas, como Ilha Solteira, em São Paulo, que têm reservatório e geram energia durante mais de 50% do tempo.
O Ministério de Minas e Energia deveria ter equacionado esses problemas, mas conflitos com o Ministério de Meio Ambiente (particularmente com o Ibama) e problemas com a demarcação de áreas indígenas e quilombolas tornaram o processo de licenciamento kafkiano.
Por essa razão, o Tribunal de Contas da União, em reunião realizada em dezembro de 2017, determinou que no decorrer do ano de 2018 o Executivo reveja vários aspectos dos problemas de produção de energia no País e suas consequências ambientais, em particular no que se refere a grandes usinas hidrelétricas, como a usina São Luiz do Tapajós, que teve seu processo de licenciamento arquivado unilateralmente pelo Ibama. Parada há cerca de dez anos por afetar terras indígenas, Tapajós evitaria a emissão de 6,5 milhões de toneladas de CO2 anuais que seriam gerados por uma termoelétrica a gás natural de ciclo combinado, considerada uma das menos poluentes em comparação com outros combustíveis, como óleo diesel ou carvão.
O TCU estimou que o consumidor brasileiro terá prejuízo de R$ 23 bilhões em 30 anos, ou R$ 774,4 milhões por ano, com a substituição da construção da usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós por termoelétricas.
Por essa razão, o TCU recomendou que a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) leve em conta alternativas às termoelétricas fósseis ao elaborar seu Plano Decenal de Expansão de Energia, como a construção de hidrelétricas.
A decisão do TCU é particularmente incisiva ao tratar do tema da sustentabilidade dos projetos hidrelétricos, ao dizer que o termo “sustentabilidade” pressupõe adequabilidade ambiental e social do empreendimento, mas também o atendimento às condições de contorno da viabilidade técnica, econômica e financeira do empreendimento, e também que “não é razoável que os interesses dos povos tradicionais prevaleçam, a qualquer custo, sobre os da coletividade”.
Por todas essas razões é urgente que as autoridades governamentais responsáveis pelo planejamento energético não só cumpram as decisões do TCU, como retomem o seu papel no planejamento energético do País.
*EX-PRESIDENTE DA COMPANHIA ENERGÉTICA DE SÃO PAULO (CESP)
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