Alguém lembra da última vez em que o Brasil produziu uma boa notícia? Qual foi a boa notícia? Na classificação que fiz, ao escutar importantes atores do segmento de infraestrutura, o anúncio da descoberta do pré-sal, em novembro de 2007, e a obtenção do grau de investimento, em abril de 2008, são o que de melhor produzimos nesses quase 11 anos. Mas nada é comparável ao lançamento do Real, em maio de 1994, que acabou com a espiral inflacionária e criou bases sólidas para um novo ciclo de desenvolvimento. Um feito de visionários. Mas aí já se passaram 24 anos.
Infelizmente, pouco temos feito para aproveitar os ventos favoráveis proporcionados por esses três acontecimentos, ou até regredimos. Não tivemos competência para superar três obstáculos, quase dogmas: o protecionismo, que restringe a busca de maiores ganhos de eficiência ao longo de toda cadeia produtiva; o patrimonialismo, que consolida as mazelas do excesso de intervenção do aparelho estatal; e o paternalismo, em que uma espécie de autoritarismo surge disfarçado em políticas públicas criadoras de dependências.
Só assim para entender as resistências, por exemplo, à liberação do mercado nos setores de energia elétrica e gás natural. A miopia generalizada impede que esses setores sejam beneficiados por uma verdadeira revolução que acontece há pelo menos duas décadas. Parece que os formuladores de políticas ainda não se deram conta de que o mundo dos feedbacks negativos, ou dos rendimentos decrescentes de escala, deu lugar ao mundo dos feedbacks positivos. São cenários de ganhos sucessivos, ainda que infinitesimal, assegurados pela competição e pelo desenvolvimento tecnológico e organizacional. Alguns países, como a Inglaterra, Alemanha, Portugal e Colômbia, foram muito bem-sucedidos no uso dessa característica e promoveram mudanças essenciais no setor energético.
O excesso de intervenção leva àquilo que alguns chamam de ciclo vicioso de fazer errado o que não presta
No Brasil não é bem assim. Vejam o caso do setor elétrico. A tarifa regulada encontra-se acima de R$ 500/MWh, dos quais 40% representam a energia das usinas e o restante os demais custos (distribuição, transmissão e encargos). Na migração para o ambiente livre, o consumidor utiliza seu poder de negociação para pagar, no máximo, R$ 200/MWh e tenta repassar parte dos demais custos (regulados) para seu novo supridor, que compete para lhe atender. Com isso, ele acaba por atrair outros consumidores para um cenário de redução da ineficiência, equilibrando o jogo do empurra-empurra do aumento dos custos. O segredo consiste em estimular a competição, isto é, em abrir o mercado. A competição é o determinante do feedback positivo.
Por outro lado, quando as compras são reguladas ou centralizadas, como acontece no Brasil, o consumidor é passivo em toda a transação. A quantidade de energia e seu respectivo preço são definidos pelo governo, que é influenciado por outros interesses, como o combate à inflação, que o leva a reduzir propositalmente o preço de compra, ou um incentivo via política industrial, que o induz a comprar o que não precisa.
O consumidor, nesse formato, assume compulsoriamente os custos da subcontratação (R$ 15 bilhões em 2014) e da sobrecontratação (R$ 8 bilhões entre 2015 e 2017), além de outras fricções regulatórias, como o risco hidrológico (mais de R$ 30 bilhões entre 2015 e 2018), os custos da péssima gestão de projetos, como Angra 3, de frequentes atrasos de obras e outras impropriedades. Fica evidente que o afastamento do mercado e o excesso de intervenção conduzem a um feedback negativo, ou àquilo que alguns chamam de ciclo vicioso de fazer errado o que não presta.
A descentralização dos investimentos é tendência mundial. A redução dos custos das centrais eólicas e dos painéis fotovoltaicos são os principais motivadores desse fenômeno. A estranha exigência, quase obsessão, de proibir usinas hidrelétricas com grandes reservatórios tem incentivado a redução de custos e prazos de construção de pequenas centrais hidrelétricas que, em geral, são conectadas em redes de distribuição. A evolução tecnológica, portanto, sinaliza que as economias de escala dos grandes projetos, que predominaram até o século passado, perdem espaço para as economias de escopo associadas à descentralização.
Na Alemanha, em 2017, quase 50% da geração de energia já eram injetados nas redes distribuidoras, e não nas transmissoras. Já existiam mais de 30 GW de energia solar, quase 60% pertencentes a consumidores e conectados na baixa tensão. Nos EUA os números são mais impactantes. O volume de geração distribuída, em 2017, equivalia a 160 GW, que corresponde à capacidade instalada total de geração do Brasil em 2018. Para 2020, a expectativa é de 400 GW apenas de painéis fotovoltaicos, com cerca de 50% pertencentes aos consumidores, que produzem sua energia. E os custos só decrescem.
O caso de Portugal é emblemático. Com a crise financeira que insiste em não deixar a terra de Camões e de Fernando Pessoa, foi eliminada a possibilidade de concessão de subsídios para investimentos em grandes plantas de geração. A descentralização dos investimentos foi a saída encontrada por empreendedores de diversos setores. A microgeração distribuída deu concretude ao caminho escolhido. Em 2017, 40 mil famílias já eram produtoras e consumidoras de sua própria energia, e este número deve subir para 400 mil nos próximos 10 anos. 18% das residências serão autoprodutoras de energia, um número espetacular, exemplo típico de feedback positivo.
No Brasil, estamos há décadas desses avanços. Ainda presenciamos discussões quanto à natureza e as razões dos subsídios e como eles serão abocanhados em leilões centralizados, em que o governo compra o que não é solicitado e ao preço que quiser. Alguns podem acumular três subsídios. Sequer há um mínimo de uniformidade quanto à apropriação precisa dos custos das diversas fontes de geração. Muitos ainda preferem os custos semanais (ou até mensais), quando, na prática, o custo da energia varia em pequenos intervalos – de uma hora, quando muito. Os riscos são calculados e repartidos por um ser onipresente, dotado de poderes que nem Bernoulli, Gauss e Pascal, juntos, teriam.
No setor de gás natural, onde a governança é ainda mais inadequada, os incumbentes, protegidos pela falta de transparência e por uma legislação retrógrada, fazem de tudo para obter distância do mercado, da competição, com um monopólio que chega ao extremo de exigir pagamentos até por serviços não prestados. São circunstâncias que apontam para a subutilização do gás produzido no pré-sal, aquela boa notícia destacada alhures, que tem tudo para transformar-se em um feedback negativo, que persiste, não se sabe até quando.
Edvaldo Santana, doutor em engenharia de produção, ex-diretor da Aneel e atual presidente da Abrace
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