O modelo vigente do sistema elétrico vem dando sinais de vulnerabilidade, uma questão sobre a qual o país deve se debruçar com urgência. Uma das principais questões é o impacto do GSF (em inglês, Generation Scaling Factor) para os geradores hidrelétricos e para o setor como um todo.
Nos últimos anos, com a falta de chuvas e escassez de água nos reservatórios em diversas regiões, os geradores hidrelétricos vêm observando uma gradual redução de sua capacidade de gerar energia elétrica. Isso é chamado de "risco hidrológico" – situação em que as usinas acabam comprando energia no mercado de curto prazo para compensar a produção menor, normalmente decorrente da falta de água.
Essa energia é adquirida no mercado com base no Preço de Liquidação das Diferenças (PLD), geralmente a custos mais elevados do que os contratados. Isso tem gerado uma longa disputa judicial. Desde 2015, muitos operadores têm entrado com liminares para evitar o pagamento de valores no mercado de energia de curto prazo. Segundo a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), a dívida dessa batalha ultrapassou R$ 6 bilhões na liquidação financeira de operações do mercado de energia em fevereiro deste ano.
Nos últimos doze meses, a dívida referente à judicialização do GSF aumentou, em média, quase R$ 400 milhões por mês, sendo que nas liquidações financeiras ocorridas entre outubro e dezembro de 2017 essa dívida cresceu a aproximadamente R$ 1 bilhão a cada mês. De acordo com a CCEE, havia um total de 165 liminares vigentes ligadas ao "GSF" na liquidação do mercado de energia realizada em janeiro.
Essa situação requer uma solução negociada e que atenda aos interesses de longo prazo do país. É preciso promover melhorias no Mecanismo de Realocação de Energia (MRE), uma espécie de condomínio das hidrelétricas, reduzindo os riscos inerentes aos fatores hidrológicos alocados aos responsáveis e, eventualmente, alterar o critério de alocação.
Sim, acreditamos que todo empreendimento envolva riscos. Mas é um contrassenso um modelo de negócio em que o risco possa ameaçar 40% do faturamento. Um bom gestor de ativos hidrelétricos diria que o normal seria um risco de 5% a 10%. Patamares muito acima quebram qualquer modelo de negócio, qualquer equação financeira. Um gerador hidrelétrico prudente investe na gestão e no bom funcionamento da usina. Ele não tem o controle da torneira dos céus e nem sobre os efeitos da mudança de um sistema hidrotérmico para térmico-hídrico e protagonismo das renováveis intermitentes na expansão da matriz elétrica. Não é justo, portanto, que assuma todas as consequências da falta de chuvas e a totalidade desses riscos – parte desse risco deve ser do país.
Muitos operadores têm entrado com liminares para evitar pagamento de valores no mercado de energia de curto prazo
Todo esse contexto tem imenso impacto no mercado de cogeração, especialmente a movida a biomassa. O calote no setor elétrico inibe investimentos. E o país, para crescer, precisa muito destes em geração distribuída – uma das mais efetivas formas de produção de energia, por estar próxima dos centros de consumo, evitando perdas técnicas e custos desnecessários com longas linhas de transmissão. Qual investidor vai aportar recursos sem a segurança jurídica de que vá receber a remuneração justa, no prazo contratado, pela aplicação feita?
Em 2017, o consumo total de energia elétrica ficou pouco abaixo dos 464 mil GWh, representando uma variação de 0,8% em relação a 2016, segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Trata-se do primeiro resultado positivo dos últimos três anos, mas ainda inferior ao consumo registrado em 2015 (464.084 GWh).
Cabe ressaltar que uma eventual retomada da economia brasileira nos próximos anos deverá ser acompanhada também de um crescimento maior do consumo de energia elétrica. De acordo com Plano da Operação Energética (PEN), divulgado pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS)/CCEE/EPE em dezembro de 2017, a previsão é que a carga de energia elétrica (consumo + perdas) do Sistema Interligado Nacional (SIN) para o ano de 2018 venha a apresentar um crescimento de 3,7% em relação a 2017. Para o período 2018-2022, o ONS prevê um crescimento médio anual da carga de energia do SIN de 3,9% ao ano, chegando a 4% no ano de 2022.
Somente a lei nº 10.848, de 15 de março de 2004, que dispõe sobre a comercialização de energia elétrica, já não atende mais à realidade do país, que vem passando por sucessivos períodos de seca. A judicialização vivenciada no mercado de curto prazo, nos últimos três anos, mostra que o ambiente institucional precisa ser modernizado.
Sabemos que o país terá um ano desafiador, em que a maior parte das atenções do mundo político e econômico estará voltada para os desdobramentos do processo eleitoral.
Ainda assim, é premente que as autoridades, juntamente com o setor, encontrem uma forma para resolver a questão da judicialização no mercado de curto prazo, com relação ao risco hidrológico. Uma boa oportunidade é avançar com as propostas recolhidas na Consulta Pública 33 sobre o tema e instituir, por meio do projeto de lei, um novo marco regulatório para o setor elétrico capaz de resolver o imbróglio da judicialização.
A solução do GSF, definitivamente, não pode ficar para 2019, já que sem resolver o imbróglio do Mercado de Curto Prazo, no qual há três anos não se recebe integralmente pelo produto fornecido ao Sistema Interligado Nacional, o setor elétrico não avançará em condições institucionais adequadas e sustentáveis. Tratar da modernização do setor elétrico sem resolver a judicialização do risco hidrológico é como tentar construir um arranha-céu sem alicerces.
Newton Duarte é presidente executivo da Associação da Indústria de Cogeração de Energia (Cogen).
Elizabeth Farina é presidente da Unica, União da Indústria da Cana-de-Açúcar.
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Fonte: Valor Econômico.
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