É urgente rever o risco hidrológico

Desde 2014 o setor elétrico brasileiro vem enfrentando uma grave crise estrutural, comercial e regulatória que teve origem na MP 579 publicada em setembro de 2012. As medidas precedentes (acentuado despacho hídrico em 2012) e as propostas na MP aliadas a uma recessão hídrica a partir de 2013, a inserção de fontes intermitentes (com prioridade de despacho) como energia de reserva e a Geração Térmica Fora da Ordem de Mérito (GFOM), influenciou o despacho a menor das usinas hidrelétricas, afetando significativamente o fator de ajuste (também conhecido como GSF, Generation Scaling Factor) do Mecanismo de Realocação de Energia (MRE).

Com isso, os geradores hidrelétricos do país se viram em um pesadelo bilionário por conta do GSF. A exposição dos geradores culminou em disputa judicial sobre o déficit das usinas hidrelétricas que, em 2014 e 2015, chegou a envolver bilhões de reais. Até então, o risco hidrológico era inerente ao negócio de geração, por estar associado a casos excepcionais de baixa pluviosidade ou erro na estratégia de contratação de energia dos geradores.

Nesses casos, cabia aos empreendedores colher as recompensas ou prejuízos resultantes da geração hidrelétrica, de acordo com as regras já conhecidas pelo setor elétrico. Entretanto, desta vez, a causa do risco hidrológico estava nas Políticas de Expansão e Operação impostas pelo governo, que alterou os modelos e estratégias dos geradores. Tal fato deixou os geradores expostos de forma involuntária, com a imposição de riscos extraordinários para os quais não havia ferramentas de gestão disponíveis.

A deterioração do GSF por fatores não hidrológicos acendeu inúmeras discussões e uma enorme instabilidade e incertezas de natureza jurídica e regulatória no setor, devido ao enorme prejuízo causado aos agentes geradores no mercado de curto prazo. Na busca de solução, o governo viabilizou, por meio da Lei nº 13.203/2015 (conversão da Medida Provisória nº 688/2015) e da Resolução Normativa da Aneel nº 684/2015, a repactuação do risco hidrológico das usinas com os consumidores.

Por estas medidas, criou-se uma espécie de seguro envolto de contrapartidas a serem honradas pelos agentes em troca dos benefícios de repactuação do risco hidrológico. A adesão dos geradores à proposta foi condicionada à suspensão das ações judiciais/liminares e renúncia a qualquer alegação de direito relativo à isenção ou mitigação de riscos hidrológicos relacionados ao MRE.

Essas medidas trouxeram um alívio temporário, mas demonstram caráter paliativo diante da evolução estrutural do Setor Elétrico Nacional. Tanto nas diretrizes de inserção de novas fontes de energia quanto na operação do Sistema Interligado Nacional que inverteu a lógica de despacho de energia, deixando a fonte hídrica em última instância para o suprimento da carga e garantindo a segurança na operação do sistema e com isso voltou o pesadelo do GSF.

O correto é um modelo onde os geradores não sejam penalizados por decisões das políticas de operação do sistema

Para demonstrar tal fato, vemos a composição da matriz elétrica brasileira se diversificando com relevante mudança. Em 2000, por exemplo, a fonte hídrica representava 94% da geração no país, em 2016 esta participação está pouco acima de 70%, por conta da ampliação da participação de fontes eólica, solar e biomassa. Essa não é uma constatação ruim, a tendência de fontes renováveis intermitentes é mundial, sendo natural e esperado que o Brasil se enquadre.

O fato é que as regras de funcionamento do modelo atual já não refletem as novas condições do sistema elétrico e as alterações promovidas nos últimos anos não trataram as questões de modo estrutural e resolutivo. Essa situação faz com que a repactuação do risco hidrológico realizada pelo governo tenha se tornado uma espécie de esparadrapo. Isso porque a questão regulatória não está acompanhando a mudança estrutural do sistema, fazendo com que os problemas com o GSF se tornem recorrentes.

Isso cria um problema estrutural para todos os geradores hídricos e especialmente para as usinas como as UHEs Santo Antônio, Jirau (recém-motorizadas) e Belo Monte (ainda em fase de motorização). Estes empreendimentos, além de não possuírem reservatórios de acumulação, estão usando os seus Ebitdas ainda para amortizar suas dívidas.

É necessário que o governo promova modificações de curto e longo prazo para que possamos resolver definitivamente essa questão do GSF. No curto prazo, o ideal seria que se adotasse uma metodologia que expurgasse do cálculo do GSF tudo o que não fosse ligado ao chamado risco hidrológico, assegurando efetivamente a contratação das concessões aderentes à metodologia e definição da Garantia Física pelo poder concedente (em média a metodologia do MME de cálculo da Garantia Física remete risco hidrológico da ordem de 5%).

Essa parcela correspondente aos riscos não hidrológicos deve ser colocada na tarifa, pois ao final é o consumidor arcando com a segurança energética do sistema como beneficiário final. Porém, numa transição a solução para o GSF seria a divisão dessa conta entre geradores, consumidores e o BNDES. Os geradores precisam nessa transição aceitar um risco um pouco superior a 5%, estabilizando num segundo momento no limite de 5%, os consumidores teriam um aumento na tarifa e o BNDES precisa ajudar a resolver a divida das empresas aumentando o prazo dos financiamentos sem rediscutir o risco do crédito. Caso seja rediscutido o risco do crédito não adiantará aumentar o prazo dos financiamentos, pois o resultado acabará sendo pior.

Outro ponto fundamental é que sem uma solução de curto e longo prazo para o GSF estaremos criando mais uma dificuldade no processo de privatização da Eletrobras. Isso porque, ao acabar com o regime de cotas das usinas implantadas pela fatídica MP 579, surgirá o problema do GSF, elevando o risco de venda desses ativos. Sem um período de transição será praticamente impossível conseguir construir uma solução estrutural para o GSF. Na solução estrutural será preciso reconhecer que o sistema elétrico brasileiro vive um momento de transição energética, com a perda da capacidade de regularização dos reservatórios das UHEs e a forte expansão das fontes renováveis intermitentes. O correto é caminhar para a construção de um modelo onde os geradores hídricos não sejam penalizados por decisões das políticas de operação do sistema e de diversificação da matriz energética impostas pelo governo.

Adriano Pires é economista e Diretor do Centro Brasileiro de Infra Estrutura (CBIE).

 

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Fonte: Valor Econômico.

 

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