Recontabilização de contratos coloca energia incentivada sob lupa do mercado

A Aneel determinou a recontabilização de operações de energia incentivada de sete comercializadoras, que haviam sido estabelecidas pela CCEE no início do ano, conforme decisão publicada na edição da última sexta-feira (2/12) do Diário Oficial da União, abrindo espaço para revisão de contratos de energia incentivada, além de criar pontos de interrogação, no momento em que o mercado livre verifica um alto número de migração de consumidores especiais, que é exatamente o alvo da energia incentivada, fugindo das altas tarifas vigentes no mercado cativo.

 

Dados mais recentes da CCEE indicam que em novembro de 2016 são totalizados 3.027 consumidores especiais – que possuem carga de 0,5 MW, cuja energia foi adquirida de fontes renováveis, contra 1.203 em dezembro do ano passado. Até o fim do ano, o número de consumidores especiais vai superar em quase 200% acima do verificado em 2015, ao fechar com mais de 3.500 clientes. No total, o número de agentes na CCEE é de 5.410 registros. A média mensal de adesões ao mercado livre neste ano até novembro é de 187 migrações, contra oito adesões mensais médias no ano passado.

 

Ao mesmo tempo, a medida cria um certo embaraço sobre parte do mercado livre, que vem defendendo arduamente a chamada portabilidade do mercado livre, a abertura total das migrações para os consumidores em qualquer carga e conectados em qualquer tensão. Isso porque a decisão tem a gênese numa falha de sistema e que gerou descontos indevidos no uso dos sistemas de transmissão ou distribuição – e, neste caso, há quem possa interpretar que algum dos agentes (ou todos), podem ter se aproveitado deliberadamente da situação – mesmo que não seja o caso.

 

Tanto é que duas das comercializadoras teriam alertado à CCEE de que suas operações poderiam apresentar eventuais erros, o que levantou a suspeita das operações pela câmara. O resultado foi que nove comercializadoras terão que recontabilizar suas operações. A decisão da Aneel ratifica uma decisão da CCEE estabelecida no início do ano, mas nenhuma das duas cria juízo de valor quanto à conduta dos agentes sobre as operações em si.

 

A recontabilização é um ajuste nas operações para que os contratos possam restabelecer o perfil de desconto originalmente estabelecido para a usina de fonte incentivada, garantindo a correção de dados e a aplicação das Regras de Comercialização de forma correta aos casos identificados. Por outro lado, no mercado, há quem veja que o acontecimento pode prejudicar a visão sobre o segmento num contexto turbulento da economia.

 

Um executivo de empresa de consultoria que falou na condição de anonimato disse que a situação se torna preocupante porque "levanta suspeitas sobre todas as operações do mercado livre", no momento em que o país exige "mais retidão" nas ações, em referência às operações de combate à corrupção envolvendo empresas que atuam no setor energético, entre outros mercados – ressaltando que nem toda operação tenha sido necessariamente registrada por má-fé.

 

A decisão da Aneel e da CCEE, segundo ele, deve ser bem recebida, pois as duas são instituições tidas como retas e de perfil altamente técnico. "Tomaram a imperfeição" [do sistema] como verdadeira", disse. A situação cria ainda um componente político, pois o grupo envolve comercializadoras de médio e grande porte, integrantes da Abraceel, associação das comercializadoras de energia, que tem encabeçado campanha pela portabilidade das contas de luz.

 

Mas há quem veja que a questão é resultado de falhas na atuação do governo. Para Rafael Herzberg, sócio da empresa de consultoria Interact Energia, o problema é mais um sinal de instabilidade regulatória, cujo ônus vai acabar recaindo sobre os consumidores. Ele lembra que quaisquer distorções geram custos adicionais sobre a energia. "Não temos mais referência do que é um preço competitivo", disse ele, que assinalou de forma contundente que "as distorções são resultado da falta de liderança e capacidade de gerenciamento do setor".

 

Em tese, como os perfis de desconto mudam na recontabilização sem alteração no total da energia negociada nos respectivos contratos, os valores de Tust ou Tusd (dependendo do tipo de conexão)  ficam equilibrados, sem impacto nas tarifas dos consumidores do mercado regulado.

 

Recontabilização afeta sete comercializadoras

 

A medida envolve contratos de energia incentivada de sete comercializadoras: Diferencial, Terra Energy, BTG Pactual, Clime Trading, ComercPower Trading, FC One e Nova Energia Trading, além de mais duas comercializadoras: Nova Energia e Prime Energy, que não recorreram à Aneel mas tiveram operações semelhantes.

 

O tema já era público desde o ano passado, mas vinha sendo tratado com reserva nos bastidores do mercado, até porque as operações não necessariamente teriam sido feitas de forma deliberada, com amplo conhecimento sobre o assunto. O problema é que a imagem que fica do episódio pode não ser positivo para todo o setor, avalia outro especialista, que também não se identificou diante da complexidade e da delicadeza do tema.

 

O entendimento da Aneel para a recontabilização foi o de que as empresas interpretaram a concessão de descontos de tarifas de uso de sistemas de transmissão ou distribuição de forma diferente do que está fixado nas regras de comercialização – segundo as palavras da Aneel no processo, "por ter sido observado que tal recontabilização resultaria em impacto na matriz de descontos com o incremento de energia incentivada sem a identificação de origem em geradores de fonte incentivada".

 

A CCEE pediu a recontabilização ao constatar que essas empresas teriam feito registros de energia incentivada sem a identificação da origem de geradores da mesma matriz energética, em operações realizadas entre janeiro e novembro do ano passado. Em outras palavras, as comercializadoras estariam, "inflando" contratos de energia incentivada, a partir de uma falha no software da CCEE para registrar tais operações, e obtendo receita com as operações.

 

Ou como disse o diretor da Aneel Reive Barros no processo, “um perfil com 50% de desconto não poderia registrar um contrato de venda para um perfil de 100%, sob a justificativa de que uma determinada quantidade de energia, com 50% de desconto, poderia ser transformada em um saldo de 100% de desconto e outro sem desconto”.

 

Na prática, é como se dois contratos de energia incentivada com direito a desconto de 50% nas tarifas-fio fossem unificados e se tornassem um contrato com direito a um desconto de 100% na tarifa-fio. A CCEE avaliou que havia uma "brecha" em seu sistema, e determinou a recontabilização, gerando recursos das comercializadoras na Aneel.

 

O impasse vem se desenrolando ao longo de 2015 e por todo este ano, mas a Aneel deu um desfecho ao dar razão à CCEE, pois embora reconheça a falha no sistema (como se fosse um bug, no jargão da informática), a prática não está prevista nas Regras de Comercialização, a base para todas as operações no mercado livre, conforme vinham alegando as comercializadoras nos respectivos recursos.

 

Outro lado

 

A Brasil Energia contatou as sete comercializadoras envolvidas na questão.

 

A Comerc Energia enviou o seguinte posicionamento, em nota: “O Grupo Comerc Energia esclarece que todas as suas operações estão integralmente de acordo com as regras vigentes, inclusive as que combinam energia proveniente de geradores de fontes incentivadas diversas. Embora haja divergências de intepretação da legislação vigente, é importante ressaltar que todas as operações da Comerc são homologadas pela própria CCEE, em linha com as devidas contabilizações da Câmara.

 

A empresa ressalta, ainda, que em momento algum houve ou haverá prejuízo a qualquer uma das partes envolvidas – direta ou indiretamente – nas operações realizadas".

 

O diretor da Nova Energia e da NovaTrade, Gustavo Machado, disse que vai acatar a decisão da Aneel e que o debate com a CCEE vai se direcionar sobre eventual retroatividade da recontabilização. O sócio da FC One, braço de comercialização da Focus Energia, Alan Zelazo, disse que a comercializadora já havia desistido do recurso na Aneel em outubro e no mês passado teve seus contratos recontabilizados. Ele contou ainda que a empresa chegou a registrar operações, mas não realizou vendas na modalidade, de modo que a decisão da Aneel não trouxe nenhum impacto sobre a companhia.

 

Não foi possível contatar a Terra Energy Comercializadora. A BTG Pactual Comercializadora (que havia comprado as operações da Coomex em 2010), a Diferencial Energia e a Clime Trading foram contatadas, mas a reportagem não teve sucesso em acessar com sucesso algum executivo.

 

Fonte: Brasil Energia

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