Edvaldo Santana, conselheiro da ABRAPCH, Ex-Diretor da ANEEL e Professor Titular (aposentado) da UFSC, é um dos articulistas da última edição do "Boletim de Conjuntura do Setor Energético – Maio de 2016".
Confira o texto:
O segmento das Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH) e das Centrais de Geração Hidrelétricas (CGH), daqui em diante apenas PCCH, é aquele que melhor caracteriza a evolução do setor elétrico brasileiro (SEB), em especial na sua origem, marcada pela livre iniciativa. A primeira (“grande”) hidrelétrica do Brasil é de 1889. Trata-se da UHE Marmelos, em Juiz de Fora/MG, com 250 kW de potência instalada, que até hoje existe. Foi uma iniciativa do industrial Bernardo Mascarenhas, que buscava alternativas para ampliar sua produção de tecidos. São mais de 127 anos. O caso que conto agora também é real.
No começo dos anos de 2000, uma importante autoridade do setor elétrico, durante uma viagem a serviço na região Norte do País, foi convidada para conhecer um empreendimento curioso, em localidade ainda mais isolada. Um cidadão, chamado aqui de Brasilino, com muito pouco estudo, talvez incomodado por não ter energia elétrica resolveu ele mesmo produzi-la e utilizar a água como insumo. Ao seu jeito, e com os poucos recursos que dispunha, Brasilino aproveitou um curso d’água, onde havia um razoável desnível, para lá construir uma muito pequena usina hidrelétrica. Era coisa de 125 kW de capacidade instalada, como um dos dois primeiros geradores da UHE Marmelos, mas o suficiente para atender às 10 casas da localidade, além de uma Igreja. E ele distribuía a energia gerada.
Esticou alguns fios, que ele mesmo comprara, conectando a usina às unidades consumidoras. Cobrava um valor fixo (tantos reais por mês) e controlava o consumo por meio de um fusível. Se a carga aumentasse sem sua autorização, o fusível “queimava”. Não se podia aumentar muito o consumo, pois a capacidade de gerar era limitada, e ainda tinha que compensar as perdas na rede. Era tudo muito rústico, mas funcionava e talvez ainda funcione. Belo exemplo de livre iniciativa, curioso, mas não surpreendente. À autoridade foi solicitado que ajudasse Brasilino na regularização de suas atividades de geração, quem sabe obtendo uma outorga de autorização. Sem pensar mais do que 10 segundos, a autoridade simplesmente respondeu: não façam isso com Brasilino. E indagou: por que submeter brilhante iniciativa à burocracia estatal, que nada de positivo lhe acrescentaria e ainda poderia aumentar seus custos? E continuou: por exemplo, o fiscal diria que a atividade era irregular, tendo em vista que, no período da seca, a produção de eletricidade seria zero, o que deixaria seus consumidores às escuras.
A norma do Regulador exige o fornecimento de energia 100% do tempo, mesmo para quem durante muito tempo nada tinha. Além disso, o Poder Concedente, se quisesse, poderia dizer que a atividade era ilegal, pois a lei proíbe que uma “distribuidora” seja também geradora. Já pensaram nos custos dos encargos e impostos? E a exigência do medidor, do ciclo de medição etc.? Abraçaram Brasilino e foram embora, deixando tudo como estava, isto é, tudo livre, submetido à livre iniciativa. Com as PCHs e suas irmãs CGHs as coisas acontecem de maneira muito parecida. Os empreendedores elaboram, com recursos próprios, seus estudos de inventários. Em um mesmo curso de rio, tantos quantos queiram podem fazer inventários, o que resulta em diversas opções de partição de quedas, ou seja, em várias alternativas de uso da água para gerar energia elétrica.
A esse elenco de partição de quedas ficam associadas diferentes montantes de capacidade instalada, que alaga mais ou menos áreas de terras, exigindo mais ou menos investimentos em desapropriações e em licenças ambientais. Ao fim de tudo isso, a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) escolhe um dos estudos, sendo os gastos dos demais, para os empreendedores, considerados como um custo afundado. Mais: para o detentor do estudo selecionado, digamos Investidor B, a situação também não é confortável: os resultados são tornados públicos, o que é ótimo, e qualquer empreendedor pode, a partir desses estudos, desenvolver um projeto básico para cada um dos eixos de barragens previstos no inventário.
Se vários projetos são apresentados, os mesmos são submetidos a um novo processo de escolha, novamente pela ANEEL. Se B não tiver qualquer projeto básico entre os selecionados (um para cada eixo), seus gastos podem ser quase que totalmente perdidos, dado que a indenização, pelo projeto desenvolvido, é limitada a valores regulatórios, em geral bem menores do que o real. Para que se tenha uma noção de alguns valores, o custo médio do desenvolvimento de uma PCCH, compreendendo estudos de inventário e projeto básico, é superior a R$ 1,5 milhão.
Há hoje quase 700 projetos em análise na ANEEL, o que representam mais de R$ 1 bilhão, isso só o que está no “prelo”. Nestas circunstâncias, o negócio PCCH é sui generis: possui elevados riscos e incertezas, mais o segundo do que o primeiro, mas ainda desperta, desde Bernardo Mascarenhas, um forte espírito empreendedor, que, por razões destacadas adiante, tem sido a duras penas exercido, contribuindo de forma relevante para a expansão da capacidade de geração. Muito a propósito, a importância do segmento de PCCH para o SEB pode ser mostrada em números, normalmente observados apenas pelos mais atentos. São números que nem sempre foram bem cuidados. No final de 2003, quando o Governo da Argentina decidiu interromper o suprimento de gás natural e de energia elétrica, o Governo brasileiro teve que estimar, com alguma precisão, suas reais possibilidades de geração.
Não foi fácil. Todos os números eram de qualidade razoável, menos os das PCCHs. Para o Operador Nacional do Sistema (ONS), a capacidade instalada de geração por meio de PCCHs era de pouco mais de 200 MW, enquanto para a ANEEL tais usinas possuíam, em 2003, mais de 420 MW de potência instalada. O interessante é que os próprios números da ANEEL mudavam com a origem: era um valor para potência outorgada e outro para a potência fiscalizada. O certo era que a diferença entre os números considerados pela ANEEL e ONS era de cerca de 100%. Hoje já não há divergências entre os números.
Todos os dados aqui utilizados foram pesquisados no dia 10 de maio deste ano na página da ANEEL na internet. Atualmente, existem no Brasil 4.508 empreendimentos produzindo energia elétrica, de todas as fontes. Desses, 1.014 são do segmento PCH+CGH, 457 no primeiro caso e 557 no segundo. Ou seja, mais de 22% dos empreendimentos de geração estão no universo das PCCHs.
Do ponto de vista da capacidade de geração, era de 5.268 MW (432 MW de CGHs e 4.836 de PCHs) a potência instalada existente em maio de 2016, representando 3,7% do total brasileiro. Parece pouco, mas em 2003 essa participação não chegava a 0,7%, isso considerando o número da ANEEL, que era bem maior. Portanto, a participação do segmento cresceu mais do cinco vezes em 13 anos, que pode surpreender. Isso seria mais do que o necessário para atender a algo em torno de 1/3 do consumo total da região Sul ou o consumo de eletricidade dos Estados de Sergipe, Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte – juntos.
Olhando adiante, constata-se que 5,2% do total da potência instalada em construção pertencem ao segmento de PCH (488 MW) e CGH (0,85 MW). Da mesma forma, 10% da potência total prestes a começar a construção pertencem às PCHs (1776 MW) e CGHs (30,3 MW), o que caracteriza um acentuado aumento de participação nos próximos 3 anos. Essa evolução muito virtuosa foi determinada por esforços que tiveram diferentes origens. O Programa de Incentivo a Fontes Alternativas (PROINFA), criado em 2002, é uma delas. Foi talvez o grande impulso para as fontes alternativas, sobretudo para as PCHs. Por meio do referido programa foram contratados 1.152 MW de PCHs, três vezes mais do que o que se tinha até então.
Os incentivos regulatórios, como os descontos concedidos pelo uso da rede, foram também essenciais para a evolução das PCCHs. Com um detalhe muito importante: trata-se de um incentivo de muito baixo custo, tendo representado cerca de 1% do total das tarifas para os consumidores finais, que é com grande vantagem compensado pelos benefícios produzidos. Mas a evolução também é explicada pelo empreendedorismo, combinado com os avanços tecnológicos e de gestão. Com efeito, até 2005 levavase 5 anos para construir uma PCH, mesmo prazo gasto para uma UHE. O prazo médio é agora de pouco mais de três anos, isso contando com as dificuldades para obter uma licença ambiental de instalação (LI).
Esses avanços também resultaram em uma relativa redução de custos médios, o que pode ser verificado pelos preços finais dos leilões recentemente realizados. Apesar desse ciclo muito virtuoso, são vários os obstáculos para as PCCHs, alguns quase intransponíveis, em geral relacionados ao excesso de burocracia e de improdutiva análise dos estudos de inventário e dos projetos básicos. É prudente mostrar isso em números. O período médio para a finalização de um estudo de inventário, do estudo propriamente dito até a aprovação pela ANEEL, está entre 5 e 6 anos, sendo 60% disso gastos pela Agência. Mais 2 ou 3 anos são utilizados para a aprovação de um projeto básico, o que parece um exagero.
Esse panorama melhorou bastante a partir de 2014, e as perspectivas sinalizam positivamente, mas o prazo total ainda é superior a 4 anos, isso apenas dentro da ANEEL. A justificativa do Regulador é razoável, pois deve ser preservada a exigência legal do aproveitamento ótimo, isto é, não deve ser permitido que o potencial hidrelétrico seja prejudicado. Garanto que é muito esforço por quase nada. Segundo os números oficiais, há um potencial hidrelétrico a ser aproveitado de 250 GW, dos quais 150 GW têm atratividade econômica.
Até 2013, aproximadamente 6 GW de estudos de PCH estavam em curso na ANEEL, mais da metade com mais de 4 anos, muitos deles em um desgastante processo de idas e vindas, de devolução, reapresentação, recursos administrativos e até na Justiça. Só que 6 GW representam 4% do potencial econômico e, se 25% disso estiverem com erro, o que é impossível, não faz sentido imaginar que o 1% das PCHs prejudique ou estrague todo o potencial hidrelétrico. É semelhante a entender que um caminhão com 20 rodas, cada uma com dez parafusos, tenha seu desempenho comprometido só porque uma das rodas tem um parafuso a menos. Por isso, é muito esforço ou gasto desnecessário por nenhum benefício.
Desde as mudanças de modelos do SEB ocorridas a partir de 2003, a ampliação do sistema tem sido determinada pelo ambiente de contratação regulada (ACR). Isto é, a ampliação do parque gerador é fortemente dependente dos contratos de compra e venda de energia celebrados com as distribuidoras.
Esta prática tem se mostrado vulnerável, pois leva a uma excessiva centralização do processo de expansão, com riscos e custos alocados de maneira desiquilibrada, onde a conta o quase sempre é repassada para o consumidor. Uma falha nesse processo compromete toda a cadeia de produção. Os episódios da descontratação, em 2014, e da sobrecontratação, em 2016, são exemplos disso. A expansão via ambiente de contratação livre (ACL) não tem sido uma tarefa trivial, podendo ser comparada a uma corrida de obstáculo, sendo o mais desafiante deles o provimento de funding para os projetos. O principal financiador, o Banco Nacional de Desenvolvimento Sócio Econômico (BNDES), exige garantias vinculadas a contratos de venda de energia, como de praxe, só que estes devem ter prazos maiores do que 20 anos. No mercado livre, ambiente natural das PCCHs, os contratos têm prazos bem menores.
Seus preços, em geral, são proporcionais à a tarifa do ACR, tornando-os mais atrativos, mas os negócios não são concretizados em virtude do inexequível arranjo de garantias financeiras. A definição de preços-tetos mais elevados quando dos leilões do ACR, opção predominantemente adotada pelo Governo, resolve de certa forma o problema, mas com maiores custos e volume bem menor de transações. Há outros caminhos de menores custos e de equacionamento não complexo em termos regulatórios, que consiste em aumentar o piso do Preço de Liquidação das Diferenças (PLDmin) para, por exemplo, o menor preço dos leilões realizados no ano anterior, ou mesmo para a média dos preços desses certames.
A necessidade de contratos passaria a ser secundária, dado que as próprias liquidações financeiras no âmbito da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) garantiriam o financiamento. Outro caminho inovador, já discutido resumidamente no Blog “papodeenergia”, consiste na definição de um fundo, composto por recursos oriundos dos próprios contratos das PCCHs, estimados a partir de um preço de referência, que também poderia ser o preço médio dos leilões realizados no ano anterior. Esse fundo pode ser administrado por uma Clearing House, e seria utilizado para cobrir as eventuais descontratações de PCCHs ocorridas no ACL, e apenas no período (não superior a 12 meses) em que a energia estiver descontratada.
Para que o empreendedor não fique inerte, ou seja, não fique sem procurar novos contratos, a cada mês, depois dos doze primeiros, seus saques do fundo seriam reduzidos gradativamente, exigindo o aporte de recursos dos acionistas para consolidar as garantias financeiras. Essa modalidade de fundo garantidor pode ser coletiva (várias PCCHs), o que reduz custos e riscos, ou individual. No mais, a expansão do parque gerador precisa retomar seu rumo. Há um bom tempo o SEB vem gradativamente perdendo sua vocação de maximizar o uso dos recursos hidrelétricos. Porém, o potencial das PCCHs que é economicamente atrativo não é desprezível, ao contrário. Do ponto de vista do meio ambiente, são comprovadas as vantagens das PCCHs, com benefícios bem maiores do que os custos.
As amarras do ACR subtraem muito do entusiasmo ao risco, deixando os empreendedores quase que fora do seu habitat natural, que, desde a origem, há quase 130 anos, é o livre mercado, a liberdade para investir, crescer e fazer crescer. Essas condições precisam ser criadas, e não falta muito.
Fonte: Boletim de Conjuntura do Setor Energético (Maio de 2016) – da FGV Energia
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