Não resta margem de manobra: o setor elétrico brasileiro está aos pedaços. Ele demanda uma profunda refundação. E o Brasil dispõe de recursos humanos em todas as esferas (blindadas dos vieses de 30 inexplicáveis partidos políticos) para a tarefa de recomeçar tudo de novo, refazer a atual modelagem que produz absurdos risíveis e debocháveis aqui e alhures.
Os agentes dialogam hoje no judiciário. Comercializadores, geradores térmicos, grandes consumidores, distribuidores, transportadores…todos vivem nos contenciosos. Ações de inconstitucionalidade habitam as escrivaninhas dos tribunais superiores da Nação.
Usinas geradoras ficam prontas e as linhas não. O inverso também é verdadeiro. E todos honestos pagam (porque gatos atingem marcas ridículas de até 40% do consumo, como na Light RJ). Pagam usinas eólicas paradas, mas contratadas e assim por diante.
Pagam por 5% de risco de déficit, mais riscos de bandeiras, mais anomalias de programas permanentemente questionáveis como o Newave que, quando não falham, recebem alimentação de dados discutíveis. Programas que aqui promovem uma geração térmica a RS$ 800/MWh, várias vezes mais caras do que na Europa quase totalmente suprida por térmicas.
Aqui pagamos nas faturas de energia encargos inexplicáveis. Entre eles os que sustentam a ANEEL, boa parte do que o Tesouro se apropria para reduzir o déficit público. Pagamos encargos para indenizar municípios banhados por lagos hidrelétricos, que nada descontam pelos benefícios que auferem. E assim por diante.
Quando chove abundantemente, os geradores hidráulicos vendem seus kWh a preços irrisórios no mercado livre. Quando estia, os geradores pagam bilhões de reais pela geração inferior à sua garantia física, fixada em nível que ninguém mais acredita. Meses de sobras não geram recursos para indenizar térmicas por um mês de falta.
Por outro lado, as termelétricas nas vacas gordas, compram a preço de banana no mercado spot e cobram bastante pela energia que entregam, mas evitam produzir nesses períodos. Pior, as térmicas não conseguem receber na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica sequer as despesas com combustíveis para sua produção. O mercado livre está travado por liminares que impedem a liquidação de contratos.
Um governador do Estado no Norte despreza e pune os milhões de usuários do Sistema Interligado Nacional e atrasa impunemente sua conexão ao grid, mantendo vantagens paroquiais e a caríssima (além de subsidiada) geração a hidrocarbonetos, sem que a galera emita um grito de revolta. Antes a Nação, por anos a fio, suportou com recursos públicos o linhão Tucurui-Manaus-Macapá. Em vão. Não há comandos legais para coibir tais governadores ou as causas que os levam a isso.
Fecham as fábricas de alumínio em lingotes. Paralisam-se as ferro ligas e outras eletrólises de não ferrosos. Passamos de exportadores a importadores desses bens intermediários, na base da indústria nacional. E nada acontece nas políticas públicas do país que detenha as sucessivas aberrações.
Divulga-se que a energia eólica é competitiva (mas nada se conscientizou da enorme quantidade de incentivos e renúncias fiscais para que esta política se efetivasse). Repete-se o feito agora com a energia solar. Observe-se que a ajuda oficial às eólicas afogou, durante anos, as pequenas centrais hidrelétricas e as usinas a biomassa. Porém isso não conta porque grupos bem organizados ganharam muito com a operação financeira subsidiada por bancos oficiais que asseguravam (com recursos públicos servidos muitas vezes pelos erários públicos) tais empreendimentos.
Dezenas de resoluções e portarias criaram, semanalmente, uma impossível degustação dos comandos legais no setor. Puxadinhos saiam de cada audiência pública da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), fazendo de um emaranhado a complexidade de entendimento sistêmico para esse bosque doente, além de cada árvore.
A insegurança não era de estranhar: cada Ministério tornou-se um feudo que não conversa com os demais, por falta de uma bússola nacional. As entidades de classe perderam sua interlocução coerente e integrada. Lutam por migalhas em cada quintal político.
O preço da energia foi para o espaço, roubando a competitividade da economia brasileira como um todo, afundando ainda mais o poder de compra dos extratos de renda mais baixos na sociedade.
Cerca de 10 GW só na geração estão à venda. Um profundo desânimo se dissemina enquanto a encenação continua com a miragem (sempre cara) da armazenagem de kW em baterias de lítio (do Afeganistão e da Bolívia), metais pesados (chumbo e que tais), e vai se destruindo mais de 100 GW em potenciais aproveitamentos hidrelétricos em nome de lobbies eurocêntricos. O ícone indígena precisa ser filtrado de manipulações.
Este texto poderia se estender por milhares de bytes. Por isso conclamo o setor a voltarmos ao marco zero. O que está aí não dá para remendar. E piora a cada dia.
Paulo Ludmer é jornalista, engenheiro e autor de Hemorragias Elétricas (ArtLiber, 2015)
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