Como um condomínio que perde moradores e precisa ratear as despesas entre menos gente, o mercado brasileiro regulado de energia elétrica segue encolhendo e deixando a conta de luz cada vez mais cara para os pequenos comércios e indústrias e os clientes residenciais das concessionárias.
“Se continuar assim, o sistema vai explodir”, prevê um executivo do setor, enquanto outro endossa o diagnóstico e classifica o modelo atual como “espiral da morte”.
No Brasil, coexistem dois mercados de energia. Cerca de 88 milhões de unidades consumidoras ainda estão no chamado mercado cativo, ou regulado, em que não têm opção senão comprar energia de uma distribuidora local. Em sua maioria são clientes do chamado Grupo B, de baixa tensão.
Do outro lado, no mercado livre, já estão 30 mil pessoas jurídicas, grandes consumidores da indústria e comércio, que não são obrigados a manter contrato exclusivo com nenhuma concessionária, e podem comprar energia de quem oferece o melhor preço. É o Grupo A, de alta tensão, que totaliza 205 mil unidades consumidoras.
No ano passado, 30 mil consumidores desse grupo economizaram R$ 40 bilhões nas compras em ambiente livre, em comparação com o que gastariam se estivessem no cativo.
Conta do subsídio energético já chega a R$ 36 bilhões
Incentivos e descontos para quem adquire energia de fontes renováveis como eólica, solar, pequenas centrais hidrelétricas e biomassa aceleram ainda mais a debandada do mercado regulado. Esses descontos hoje estão na casa de R$ 8,5 bilhões por ano e são pagos em maior parte pelos consumidores cativos (os que permanecem no “condomínio”) por meio da Conta de Desenvolvimento Energético, que já alcança R$ 36 bilhões anuais.
“Quando opta por sair do mercado regulado, e passa a comprar dessas fontes incentivadas, o consumidor tem um desconto na tarifa de uso do sistema elétrico de transmissão e distribuição. Esse custo vai hoje para a conta CDE. Além da diferença no preço, ainda tem um incentivo para quem migra e deixa o custo no mercado”, diz Marcos Madureira, presidente da Associação Brasileira dos Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee).
“É o que a gente chama de “espiral da morte”. Toda vez que alguém sai, vai deixar mais caro para quem fica e vai aumentando essa saída”, sublinha. E os penduricalhos na conta do condomínio só aumentam. Madureira cita como exemplo mais recente a Medida Provisória que recriou o Programa Minha Casa, Minha Vida.
“É algo que pode até parecer bom, uma compulsoriedade de comprar sobras de energia de sistemas solares do programa Minha Casa, Minha Vida. Mas se eles não consumirem tudo, o sistema terá que pagar R$ 400 o megawatt-hora, que é o valor de referência. No entanto, como eu não necessito essa energia no sistema elétrico, ela vai sobrar e será comercializada a R$ 70 o megawatt-hora. E essa diferença vai onerar os consumidores que estão no mercado regulado”, enfatiza o presidente da Abradee. “São medidas como essa que aumentam o desequilíbrio. Toda vez que se faz um tratamento diferenciado, você está penalizando os demais”.
Fuga do mercado cativo pode se acentuar em breve
Seria como tentar conter vazamento numa caixa d’água? “Diria que hoje já está parecendo mais uma peneira mesmo. A quantidade de benefícios onerando o consumidor é muito grande. Somos favoráveis à abertura de mercado, à geração distribuída e outras, mas somos contrários que alguém tenha que pagar mais, que seja penalizado para que outro tenha um benefício”, completa Madureira.
A partir de 1.º de janeiro de 2024 um novo contingente de 106 mil unidades consumidoras de média e alta tensão (o restante do Grupo A) estará igualmente habilitado a comprar energia no mercado livre, ao entrar em vigor a portaria 50/2022 do Ministério das Minas e Energia (MME).
Uma pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) apontou que 56% das indústrias que estão no mercado cativo têm interesse em migrar para o mercado livre a partir de 2024.
Segundo a consultoria Greener, a conta de luz no mercado livre costuma ficar entre 20% e 30% mais barata. “Contudo, não se espera uma debandada geral desses 106 mil consumidores, até por falta de acesso à informação. E também por desconhecimento, por medo, já que o mercado de energia é volátil e você precisa estar muito bem assessorado por uma comercializadora”, pondera Heloísa Burin, analista da Greener.
As comercializadoras de energia se multiplicaram no país – atualmente já são quase 600 cadastradas – e tentam “abrir os olhos” dos empresários para a oportunidade de pagar menos, pulando fora do mercado regulado
O executivo Claudio Ribeiro, presidente da 2W Ecobank, diz se sentir como um capitão do Bope, o Batalhão de Operações Policiais Especiais. “Digo que sou líder do Bope porque meu papel é liberar refém. Tirar você do jugo da distribuidora. Digo aos empresários: você pode ser livre, e vai continuar saindo energia no mesmo cabo na tua empresa. Mas vai pagar mais barato, por uma energia renovável e sem precisar investir nada”, enfatiza.
Para empresário, sistema atual está prestes a “explodir”
A empresa comandada por Ribeiro busca agressivamente trazer clientes para o mercado livre: atualmente, apenas 31,5% dos já habilitados pelas regras toparam migrar. Ribeiro viaja o país procurando mostrar aos empresários que é possível migrar e economizar, sem precisar investir.
“O sistema como está hoje vai explodir. O grande já está no mercado livre e o pequeno logo virá. A distribuidora está ficando cada vez com qualidade pior de negócio, e consegue investir cada vez menos. Vai piorar a saúde financeira, ficando a tarifa cada vez mais cara. O último que ficar vai pagar a conta de quem saiu antes”, diz Ribeiro.
Em menos de três anos, ele já conseguiu uma carteira de R$ 1 bilhão para sua comercializadora de energia. A 2W aposta ainda em geração própria, e está investindo R$ 2 bilhões para levantar duas usinas eólicas no Nordeste.
A abertura do mercado de energia no Brasil está atrasada há mais de uma década. Em Portugal todo consumidor, mesmo os residenciais, podem escolher de quem comprar energia há 15 anos. Na Inglaterra, a liberdade de escolha já é realidade há 25 anos. Por aqui, a liberalização do Grupo B, de baixa tensão, só deve chegar em 2026 (pequenos comércios e indústrias) e em 2028 (residências), e deve ser antecedida de consulta pública e regulamentação legal.
Abertura não pode ser um “big bang”, diz ex-ONS
Outro sintoma desse cenário de “salve-se quem puder” do mercado cativo seria a corrida dos consumidores de baixa tensão para a microgeração, implantando telhados solares nas residências e comércio, e para a compra de energia da geração distribuída das chamadas “fazendinhas solares”.
Para Luiz Eduardo Barata, presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia e ex-diretor-geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), a abertura total do mercado é inevitável, como já aconteceu há vários anos nas telecomunicações.
“Mas não pode ser um big bang, de uma hora para outra liberar para todo mundo. Tem que ser feito de forma escalonada, para que não provoque um baque tão grande para os consumidores e também para os provedores. Poderíamos ter avançado na liberação para o consumidor numa velocidade maior do que se fez. A perspectiva é de que nos próximos isso aconteça, mas de uma forma muito bem pensada e planejada, sob o risco de criar problemas maiores”, sublinha Barata.
O atual marco regulatório do sistema elétrico brasileiro, incluindo a criação do mercado livre, foi construído em 1998, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Depois o marco sofreu mudanças em 2004, no governo Lula (PT), e mais tarde na gestão de Dilma Rousseff (PT).
A questão é que, quando foi desenhado, o modelo não considerava um mercado livre respondendo por 40% da energia comercializada, como hoje. E abordava principalmente as fontes hidrelétrica e térmica. Atualmente, contudo as fontes eólica e solar já superam a contribuição das termelétricas.
“Também não se falava em geração distribuída quando o marco foi estabelecido. Essas mudanças tornam imprescindível a revisão de todo esse arcabouço”, afirma o ex-diretor do ONS.
Momento é de debate de mudanças no setor elétrico
Na prática, em curto prazo serão tomadas várias medidas que devem impactar o funcionamento do mercado do sistema elétrico brasileiro. Desde a reforma tributária, que poderia diminuir o peso dos impostos na tarifa, até a definição dos parâmetros de renovação dos contratos de 21 distribuidoras de energia do país que vencem até 2030, como a Enel São Paulo, CPFL, Light e Escelsa.
Em agosto, começa a renegociação do Anexo C do tratado de Itaipu Binacional, que obrigava que fosse destinada ao Brasil toda a energia excedente não utilizada pelo Paraguai. Tudo isso, agora, deverá ser renegociado.
“A mídia tem um papel fundamental de colocar esses assuntos em manchetes, chamando atenção da sociedade para um problema fundamental, que é o custo da energia. O legislativo e o executivo têm essa responsabilidade, mas sobretudo a sociedade precisa se sensibilizar para fazer pressão e colocar o assunto na pauta de discussão do país”, conclui Barata.
Para a Abradee, é preciso estabelecer mecanismos que não permitam que se continue a acrescentar custos para um mercado, em benefício de outro. O caminho mais adiantado para isso seria o projeto de lei (PL) 414, que aguarda apreciação na Câmara dos Deputados.
O projeto prevê a abertura total do mercado em 42 meses, a partir de sua promulgação, sendo que os pequenos consumidores (abaixo de 500 kW) terão de comprar energia por meio de um comercializador varejista, que os representará junto à Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).
“Ele não resolve problemas passados, mas pelo menos cria condições para evitar que esse problema continue crescendo”, diz Madureira, da Abradee.
Marcelo Loureiro, membro do Conselho de Administração da CCEE, observa que um dos desafios do setor é a gestão dos contratos legados pelas distribuidoras, ou seja, o que fazer com o custo da energia contratada obrigatoriamente, mas que não está sendo utilizada devido à migração dos clientes.
“Existem ações no sentido de evitar novos legados, inclusive constantes no PL 414. Há uma outra ação, refletida no citado PL, que consiste em, no caso de a revitalização da gestão do portifólio pelas distribuidoras não ser suficiente, o custo legado recairia a todos os consumidores, não somente os cativos. Outra ação poderia ser limitar a velocidade da abertura do mercado. Claro, estas duas últimas ações são impopulares entre os consumidores que são ou que desejam ser livres, de modo que entendemos que ações no sentido da gestão do portfólio das distribuidoras devem ser endereçadas o quanto antes”, conclui Loureiro.
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