ADI 7.319 e ADPF 979: precedentes resguardam setor elétrico de desvios


Foram concluídos, nas últimas semanas, dois importantes julgamentos para o setor elétrico perante o STF: o da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 7.319 e o da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 979, ambas ajuizadas pela Abragel.

A ADI 7.319 foi ajuizada com o objetivo de declarar inconstitucional a Lei nº 11.865/2022 do estado do Mato Grosso, que, sob pretexto do exercício da competência concorrente para legislar sobre meio ambiente, proibia a construção de usinas hidrelétricas (UHEs) e pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) em toda a extensão do Rio Cuiabá, independentemente de qualquer tipo de análise técnica.

Por maioria de votos (8 x 2), o Supremo Tribunal Federal acatou o pedido da Abragel, declarando a inconstitucionalidade da Lei nº 11.865/2022 do estado do Mato Grosso. O entendimento que prevaleceu foi o de que a lei em questão é formalmente inconstitucional, por usurpação da competência privativa da União para legislar sobre energia elétrica e consequente violação aos artigos 20, III e VIII; 21, XII, “b”; 22, IV; e 176 da Constituição Federal de 1988.

Por sua vez, a ADPF 979 foi ajuizada com o objetivo de declarar inconstitucional a Lei nº 6.766/2022 do município de Cuiabá, que também proíbe a construção de UHEs e PCHs em toda a extensão do Rio Cuiabá compreendida no território do município.

O STF, também por expressiva maioria (8 x 2), reconheceu que a lei municipal, ao proibir a construção de UHEs e PCHs, além de também dispor sobre matéria de competência privativa da União, tal como reconhecido na ADI 7.319, acabou por avocar indevidamente a capacidade de concessão de licenças do Poder Executivo Federal, que fica impossibilitado de deliberar sobre as questões ambientais e hidrelétricas no curso do Rio Cuiabá, de domínio da União.

O entendimento do STF consagrado na ADI 7.319 e na ADPF 979 não é novidade. Em outras ocasiões, como nas ADIs 7.076, 6.998, 7.337 e 2.337, o Supremo já havia consignado o entendimento de que estados e municípios que editam leis relacionadas a energia elétrica e águas invadem a competência privativa da União para legislar sobre esta matéria.

Contudo, até o julgamento da ADI 7.319 e da ADPF 979 não havia deliberação específica sobre a inconstitucionalidade de eventual lei estadual ou municipal que, expressamente, proibisse empreendimentos hidrelétricos sob pretexto da competência concorrente para proteção ao meio ambiente. Por esse motivo, o caso ganhou forte relevância na mídia nacional, tornando-se uma excelente oportunidade para esclarecer: 1) o motivo pelo qual a competência para legislar sobre energia elétrica no Brasil é da União, não cabendo nenhuma forma de concorrência entre entes estatais neste caso; e 2) algumas distorções a respeito da fonte hídrica que foram trazidas à mídia e acabam por confundir e ludibriar a sociedade em geral.

Primeiramente, existe uma razão econômica setorial para que o Constituinte tenha consagrado a competência legislativa privativa da União para legislar sobre energia elétrica.

No Sistema Interligado Nacional (SIN), como o próprio nome indica, existe a interconexão dos sistemas elétricos, por meio da malha de transmissão, propicia a transferência de energia entre subsistemas, permite a obtenção de ganhos sinérgicos e explora a diversidade entre os regimes hidrológicos das bacias. A integração dos recursos de geração e transmissão permite o atendimento ao mercado com segurança e economicidade” [1].

Significa dizer que a geração de energia produzida no Mato Grosso, por exemplo, pode abastecer a população do Nordeste, justamente porque o sistema é interconectado. Essa lógica está intrinsecamente ligada ao pacto federativo selado em nossa Constituição Federal [2] [3].

Por essa razão, o setor elétrico deve ter políticas públicas unificadas, coordenadas e de âmbito nacional, cabendo ao órgão da administração pública federal direta, Ministério de Minas e Energia (MME), a formulação de políticas nacionais de aproveitamento dos recursos hídricos e das demais fontes para fins de geração de energia elétrica [4] e à autarquia Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) [5] [6] a implementação de políticas e diretrizes do governo federal para a exploração da geração de energia elétrica e o aproveitamento dos potenciais hidráulicos, especificamente, a autorização dos aproveitamentos hidrelétricos [7].

Considerando esse contexto setorial, o constituinte intencionalmente indicou, em seu artigo 22, inciso IV, que compete privativamente à União legislar sobre energia elétrica e, em dispositivo posterior (artigo 24), previu a competência concorrente para legislar sobre o meio ambiente.

Ora, se, a pretexto da competência concorrente para legislar sobre meio ambiente, fosse possível legislar sobre energia elétrica, haveria um esvaziamento da competência privativa da União do artigo 22, IV. Seria como se o dispositivo não existisse. Isso provocaria também o afastamento do federalismo centrípeto que sempre caracterizou a República brasileira [8], assim como o já mencionado pacto federativo.

Por essa razão, o STF interpretou a Constituição Federal no sentido de que, para fins do exercício da competência concorrente para legislar sobre proteção ao meio ambiente, estados e/ou municípios não podem invadir a competência privativa da União, disposta no artigo 22, IV, da Constituição, e legislar sobre energia elétrica.

A propósito, caso o STF assim não compreendesse, “poderia ser gerado precedente para que outros estados editem leis que restrinjam o aproveitamento de potenciais hidráulicos. Essa medida tem o potencial de diminuir a competitividade no segmento de geração de energia elétrica com afetação nos custos da energia elétrica, bem como na confiabilidade da operação do sistema elétrico” [9]. Esse entendimento, conforme julgado pelo STF, estende-se aos municípios.

Para além da inconstitucionalidade formal apontada, ainda que a Lei local para impedir a exploração de energia hidrelétrica pudesse ter justificativa na competência concorrente do estado para legislar sobre a proteção do meio ambiente, é fundamental esclarecer, com base em elementos técnicos, imprecisões trazidas sobre a fonte ao longo do julgamento da ADI e da ADPF, sem embasamento algum. A realidade sobre a fonte hidráulica é a seguinte: 1) são fontes limpas e renováveis e seguras; 2) são verdadeiras aliadas aos objetivos do Brasil em prol da transição energética; e 3) possuem baixa emissão de gases de efeito estufa, apenas para citar os principais pontos.

A começar, a geração por meio da fonte hídrica é essencial para o Brasil, conforme informações indicadas pela própria Aneel e trazidas aos autos da ADI 7.319 pela Abragel [10]“Fontes hídricas são essenciais para garantir o suprimento de energia firme e a confiabilidade do sistema elétrico brasileiro, sendo um importante diferencial do nosso país. Trata-se de um potencial energético renovável, cujo custo marginal de produção é nulo. Em realidade, no contexto brasileiro, a geração hidrelétrica é a fonte de energia que, no âmbito da operação em tempo real, modula o balanço energético do sistema em face das incertezas que invariavelmente permanecem entre o processo de programação e a operação em tempo real (desvios de carga, de afluências hidrológicas, de geração eólica e solar, de disponibilidade de equipamentos), provendo-lhe os principais serviços de confiabilidade”.

Acerca dos impactos ambientais, a fonte hídrica é a única fonte de geração limpa e renovável capaz de suprir a intermitência das fontes solar e eólica ao mesmo tempo que garante a confiabilidade ao SIN. Significa dizer que a melhor maneira de garantir a expansão das demais fontes renováveis alternativas é por meio da concomitante expansão da geração hidrelétrica, com capacidade de armazenamento e fazendo o papel de verdadeiras baterias do sistema elétrico, porém, limpas e renováveis.

Em recente relatório da International Renewable Energy Agency (Irena) [11], é destacado o relevante papel que as hidrelétricas representam no desafio mundial de atingir as metas climáticas definidas pelo Acordo de Paris. O relatório destaca a necessidade de dobrar a capacidade instalada desta fonte até 2050 e de que governos, instituições de financiamento e estruturas regulatórias devem trabalhar em conjunto para viabilizar projetos e investimentos. Isso além de promover o reconhecimento pelo mercado do alto valor desta fonte, no que diz respeito à prestação de serviços ancilares, gestão da água e benefícios socioeconômicos.

Agrega-se ainda o fato de que as hídricas são responsáveis pela geração de energia elétrica com os menores índices de emissões de CO2, de acordo com Estudo da EPE [12]. Segundo esse estudo, todas as fontes renováveis emitem menos gases de efeito estufa em comparação às fontes convencionais. Mesmo quando comparada apenas às fontes renováveis, a hídrica é a menor emissora de CO2, considerando toda a cadeia produtiva (da fabricação até o descarte). Some-se a isso a sua vida útil, de mais de cem anos em operação e a reversibilidade ao patrimônio da União de todos os ativos.

Ademais, as barragens do Setor Elétrico são sabidamente seguras [13], pois são estruturais e não são alteradas desde o início da operação e ao longo de sua utilização. Principalmente por isso não se confundem com as barragens de mineração, que são constantemente alteradas ao longo da vida útil.

Especificamente sobre as PCHs, estudos da consultoria empresarial A.T. Kearney [14] concluem que a fonte agrega na construção e na constituição de áreas de preservação permanentes (APPs) no seu entorno, protegendo não apenas o lago, mas afluentes e até nascentes. Ainda, há pesquisas que apontam [15] a melhoria significativa dos indicadores socioeconômicos em municípios com PCHs.

A realidade é que a fonte hídrica também é aliada da proteção ambiental, das metas de descarbonização e da transição energética, fazendo-se imprescindível afastar inverdades e preconceitos a seu respeito, que acabam atrasando o desenvolvimento sustentável do país.

Não bastasse tudo o que foi acima exposto, cabe acrescentar ainda que a competência concorrente para legislar sobre meio ambiente não autoriza o Poder Legislativo a ignorar as atribuições do poder executivo, por meio dos órgãos do Sisnama, da realização da avaliação caso a caso dos impactos ambientais de empreendimentos, o que se dá no âmbito do processo de licenciamento ambiental, instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente.

Há de se lembrar também que a licença ambiental para empreendimentos efetiva ou potencialmente causadores de impacto ao meio ambiente dependerá de prévio estudo de impacto ambiental, como, por exemplo, EIA/RIMA ou RAS, garantida a realização de audiências públicas, nos moldes previstos na Resolução Conama nº 09/1987.

Ou seja, os julgamentos da ADI 7.319 e da ADP 979 são de extrema relevância, não apenas para reforçar a competência privativa da União para legislar sobre energia elétrica, como, também, para reconhecer a competência dos órgãos do Sisnama para a avaliação de impactos ambientais, por meio do licenciamento ambiental, e, ainda, para desmistificar a realidade sobre a fonte hídrica.

Assim, considerando o entendimento exposto na ADI e na ADPF, aguarda-se que estados e municípios sigam o entendimento do STF, cujo efeito é erga omnes, evitando insegurança jurídica e novas judicializações.

Por Conjur
https://www.conjur.com.br/2023-mai-23/opiniao-adi-7319-adpf-979-precedentes-resguardam-setor-eletrico-desvios-exercicio-competencias-constitucionais

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