O setor elétrico brasileiro enfrenta uma crise grave e complexa. Tal qual no início dos anos 1990, observa-se perda de remuneração em muitas empresas, contestação de cobranças pelo suprimento de energia e investimento insuficiente para fazer frente ao crescimento da demanda. A melhoria do contexto econômico e um novo modelo setorial deverão encaminhar soluções satisfatórias para esses problemas, bem como incorporar a flexibilidade necessária às inovações e exigências que se prenunciam.

A demanda de energia elétrica, mesmo contida pela baixa atividade econômica, sobretudo industrial, tem sido atendida com frequente e intenso uso de geração termelétrica de custo elevado. Dívidas bilionárias judicializadas por desacordo quanto às responsabilidades de diversos agentes e aos procedimentos operacionais que os afetam financeiramente tornam o setor disfuncional.

O atual modelo do setor elétrico foi concebido inicialmente há mais de vinte anos, com três objetivos principais: assegurar o suprimento do mercado, atender ao preceito constitucional que condiciona a concessão de bens e serviços públicos à sua licitação e promover a competição dos agentes, para propiciar a redução dos preços do suprimento. Neste sentido e para incentivar o investimento privado, foram adotados critérios apropriados a países onde predomina a geração termelétrica, onde a operação de uma usina não afeta a de outras e a disponibilidade de da energia primária, no caso o combustível, é, em boa medida, controlável. Além desses aspectos, excessiva ingerência governamental na operação do sistema acarreta custos adicionais e impede que os objetivos fundamentais dos serviços do setor elétrico – eficiência, competitividade e sustentabilidade – sejam plenamente alcançados.

Vários elementos que hoje caracterizam o setor elétrico e afetam geradores e consumidores, carecem de revisão. Talvez o principal seja o chamado GSF, que constitui um redutor da "geração garantida" das usinas hidrelétricas, obrigando-as a comprar no mercado de curto prazo a energia que deixem de gerar, devido não só a situações hidrologicamente desfavoráveis como também à imposição de geração termelétrica adicional, fora da ordem de mérito, para aumentar a segurança do suprimento, ou à falta de capacidade de transmissão ou ainda à redução da geração hidrelétrica para permitir que a energia gerada a partir de fontes intermitentes, cujo custo marginal é nulo, seja absorvida pelo sistema interligado. Dívidas decorrentes da aplicação do GSF tem sido motivo de contestação, vindo a constituir grave desestímulo a novos investimentos na geração e causa de aumento da remuneração exigida para fazer face a esse risco, pois os concessionários de usinas hidrelétricas não têm controle sobre a afluência a seus reservatórios e sua operação. Esta questão carece de novo tratamento, que reflita o caráter sistêmico do suprimento e aloque o custo do risco hidrológico a quem possa minimamente controla-lo ou à totalidade dos consumidores.

Novo modelo deve considerar que consumidores, livres e cativos, são atendidos pelo sistema interligado

No plano comercial, o modelo atual baseia sua operação em contratos entre empresas geradoras e distribuidoras, além dos consumidores livres. Entretanto, fisicamente quase todos os consumidores são atendidos pelo sistema interligado. É graças à operação coordenada desse sistema que os custos do suprimento são reduzidos graças aos ganhos de sinergia entre seus componentes – usinas de várias naturezas, reservatórios e linhas de transmissão. O relevante benefício proporcionado pela coordenação da operação do sistema interligado é um ganho sistêmico e como tal deveria ser tratado. Consequentemente, a remuneração de uma usina hidrelétrica não deveria ser pela energia contratada e produzida (pela própria ou por outra usina hidrelétrica que participe do MRE, ou ainda por uma térmica), mas mediante um critério que proporcione maior estabilidade, que não dependa da sua operação e sim de sua disponibilidade.

Com o aumento da participação da geração termelétrica associada às condições hidrológicas, a variabilidade do seu impacto nas tarifas de consumo precisa ser atenuada, por prejudicar a tomada de decisão de muitos consumidores. Portanto, as "bandeiras tarifárias", instrumento criado recentemente para prover necessária antecipação de receita às distribuidoras em períodos em que os custos de geração termelétrica aumentam significativamente, deixam a desejar. Apresentado como "sinal de preço" (mais propriamente "sinal de custo") este instrumento não tem gerado receita suficiente em períodos de maior geração termelétrica, obrigando as distribuidoras a bancarem as diferenças até nova revisãatilde;o tarifária. Por outro lado, aos consumidores interessa mais contar com tarifas estáveis e previsíveis do que conhecer os custos incorridos em seu suprimento. Quanto a estimular aumento de eficiência dos consumidores, faz pouco sentido aplicar um estímulo eventual, como se em momentos de abundância a eficiência fosse menos necessária.

Com a expansão do mercado livre, que já representa cerca de 30% do total, em breve será inviável cobrir os custos de combustível com base nas "bandeiras tarifárias" aplicadas apenas aos consumidores cativos. Num novo modelo a diferenciação de responsabilidades dos consumidores, livres e cativos, precisa considerar que ambos são atendidos pelo mesmo sistema interligado.

Esses temas, dentre os muitos outros a serem tratados no novo modelo do setor elétrico, como a inserção da geração intermitente no sistema interligado, a geração distribuída, os compromissos ambientais e a rápida evolução tecnológica já destacam a vital importância de uma articulação entre planejamento, operação e comercialização, aderente à natureza do setor, e exigem uma concepção mais ampla do que a do modelo que se encontra em discussão no Congresso Nacional.

Pietro Erber é diretor do Instituto Nacional de Eficiência Energética- INEE

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